São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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Os males fabricados

MAURICIO STYCER
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma horripilante forma de violência cometida contra crianças, praticamente desconhecida no Brasil, vêm intrigando pediatras, psiquiatras, policiais, promotores e juízes nos EUA e Europa.
Trata-se da Síndrome de Munchausen Transferida ou Síndrome de Munchausen por Procuração (conforme duas tentativas de tradução do termo "Munchausen Syndrome by Proxy", feitas por dois pioneiros do estudo desse distúrbio no país).
A síndrome tende a chamar cada vez mais a atenção de médicos e pesquisadores que tratam do abuso contra crianças, tema que, junto com o da delinquência juvenil, ocupa espaço central nas análises contemporâneas da violência (leia artigos às págs. 5-6 e 5-7).
Na sintética definição dos psiquiatras americanos Bernard Kahan e Beatrice Yorker, "a Síndrome de Munchausen Transferida é uma forma pouco comum de abuso infantil, no qual um dos pais, normalmente a mãe, leva a criança ao médico com sintomas que foram simulados ou induzidos pela própria mãe, fazendo com que a criança seja submetida a tratamento médico desnecessário e potencialmente causador de um mal".
Maus-tratos praticados contra crianças sempre chocam e causam repulsa. A Síndrome de Munchausen Transferida (SMT) introduz um sentimento a mais: incredulidade. Devido à enorme dificuldade que há em diagnosticar a síndrome, os relatos de alguns casos chegam a soar inverossímeis.
"É uma das mais violentas e bizarras formas de violência contra crianças", diz o delegado de polícia Mauro Marcelo de Lima e Silva, um dos maiores especialistas do assunto no Brasil.
Mais de 200 casos já foram descritos em revistas médicas, contando histórias -inacreditáveis- de mães que envenenaram seus filhos de propósito, de crianças que receberam injeções de insulina (ficando num estado de hipoglicemia e entrando em coma) ou que sofreram infecções após terem sido forçadas a ingerir fezes.
"É uma forma muito sofisticada de vitimização, de abuso contra crianças", diz o médico Jayme Murahovschi, diretor clínico do Serviço Paulista de Pediatria, do Hospital 9 de Julho.
Murahovschi chefiou a equipe que diagnosticou um impressionante caso de SMT no hospital (leia na página ao lado) e o relatou, em 1996, no "Jornal de Pediatria", da Sociedade Brasileira de Pediatria. Segundo o médico, esse relato da experiência é "o primeiro publicado na literatura médica brasileira e latino-americana".
O perfil da mãe que simulou um sangramento no ouvido de sua filha de três anos, no caso acompanhado por Murahovschi, mostra a dificuldade envolvida no diagnóstico e combate da SMT.
T., de 27 anos, era uma mulher considerada afetuosa. Acompanhou a hospitalização de sua filha em todos os momentos, elogiando o atendimento que a equipe médica estava dando à criança. Ela tinha conhecimentos de enfermagem e estimulava o uso de procedimentos médicos sofisticados, ainda que potencialmente perigosos, em sua filha.
Por que essa mulher inseriu pequenas amostras de um líquido vermelho no ouvido da criança e insistiu, durante um período de internação de 30 dias, que sua filha estava sangrando pelo ouvido?
As respostas que médicos e psiquiatras dão a esta pergunta ainda parecem insatisfatórias.
"As mães fabricam doenças nas crianças para satisfazerem as suas próprias necessidades de angariar atenção e simpatia", diz, por exemplo, o psiquiatra norte-americano Marc D. Feldman, um dos maiores estudiosos de falsas doenças nos EUA.
"Na verdade, você pode ter uma série de patologias numa mãe que faz uma coisa dessas. A questão de fundo é que se trata de uma violência, que se expressa por meio do elo familiar mais fraco, que é a criança", diz o psiquiatra Francisco Assumpção Jr., diretor do Serviço de Psiquiatria Infantil do Hospital das Clínicas.
O nome da síndrome
A Síndrome de Munchausen Transferida foi citada pela primeira vez em 1977, pelo pediatra inglês Roy Meadow.
O nome foi dado em referência à Síndrome de Munchausen, descrita pela primeira vez em 1951, pelo também médico inglês Richard Asher. O termo se aplica a pessoas que procuram médicos com sintomas falsos, inventados, e encontram algum tipo de prazer em se submeterem a exames e tratamentos desnecessários.
O batismo da síndrome foi uma homenagem ao barão de Munchausen, oficial alemão que viveu no século 18 e ficou famoso pelos casos fantásticos que narrava de episódios que supostamente viveu.
A enorme criatividade do barão de Munchausen foi levada às telas pelo cineasta Terry Gilliam, no filme "As Aventuras do Barão de Munchausen" (1989).
10% de mortes
Não há, ainda, estatísticas a respeito da incidência da Síndrome de Munchausen Transferida sobre a população. Os números disponíveis são fruto apenas da análise dos cerca de 200 casos já descritos.
A partir daí, o que se sabe é que 98% dos acusados de praticarem maus-tratos são mulheres, com idades entre 25 e 35 anos, e que, em 75% dos casos, a violência ocorreu dentro de hospitais.
Os psicoterapeutas britânicos Peter Randall e Jonathan Parker calculam que em 10% dos casos as crianças morreram nas mãos das mães, mas outros especialistas avaliam que esse índice pode ser maior. Também não se sabe precisar quais foram as sequelas -físicas e psicológicas- deixadas nas crianças vítimas da SMT.
Ainda segundo Randall e Parker, é preciso, em média, seis meses para diagnosticar um caso de Síndrome de Munchausen Transferida.
Câmera escondida
Como qualquer forma de abuso infantil, a SMT é de notificação obrigatória às autoridades que cuidam da defesa dos direitos da criança, inclusive no Brasil. Nos EUA e na Inglaterra, já há grupos especializados em uma espécie de "guerrilha" contra a síndrome.
Uma forma utilizada para se constatar o abuso cometido pelas mães é camuflando uma câmera de vídeo no quarto do hospital onde a criança-vítima está internada.
Com uma câmera escondida já foi possível, por exemplo, flagrar mães fingindo que abraçavam, mas na verdade sufocavam seus filhos. Ou mães que inoculavam substâncias tóxicas nas crianças.
O problema da câmera escondida é que as imagens obtidas dessa forma têm valor legal muito questionável nos EUA, dificultando a condenação das envolvidas.
Não existe tratamento específico para mães ou pais que sofrem da síndrome. Psicoterapia é recomendável, mas não resolve um problema essencial: a grande maioria dos que cometem esse tipo de abuso não admitem que o fazem, mesmo após o flagrante.

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