São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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Escombros e vitórias do feminismo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

São 9h. Carolina Ferraz aparece dirigindo seu carro apressada, rumo ao trabalho. Óculos escuro, cara lavada, um lindo exemplo de "mulher moderna". Sem desviar o olhar em direção à câmera, sintonizada no trânsito, ela nos informa agitada que está indo para o centro de São Paulo a fim de gravar entrevistas para o programa "Mulher Invisível", o mesmo que a essa altura já estamos vendo na tela.
Logo a seguir, sempre no carro, lembra que ainda tem de ir ao sapateiro buscar um sapato, mandar uma torradeira para o conserto, levar um quadro para emoldurar e depois pegar a filha na escola.
O tom de sua fala é de reclamação, mas não de lamento. A atriz parece estar eufórica com o excesso de coisas a fazer. Ela trata aquilo com um irreprimível orgulho, mostra-se feliz com tantas tarefas, reclama das atribuições com o ar de vencedora, de alguém que consegue conciliar vida profissional e o velho papel de dona-de-casa.
A cena, exemplar sob todos os aspectos, consta da abertura do "Mulher Invisível", que estreou terça, às 23h, e terminou ontem, no GNT (Net/Multicanal). Ela condensa os impasses do movimento feminista; resume ao mesmo tempo seus escombros e suas conquistas, que não são poucas.
Surpreendentemente bem realizado, com roteiro e direção de Diléa Frate, o programa prossegue entrevistando várias mulheres, anônimas e famosas, ricas e pobres, brancas e negras, jovens e idosas. Tomados em conjunto, os depoimentos têm um efeito "desmaniqueizante", que empurra a discussão sobre a "condição feminina" para o terreno esclarecido, o que é muito raro na TV.
O mais interessante em "Mulher Invisível" é que o próprio programa trata de relativizar o "drama" pessoal da apresentadora, que é também a idealizadora da série. Ao dar a palavra a mulheres negras, ou a operárias abandonadas pelos maridos com cinco ou seis filhos nas costas, o programa introduz elementos no debate que o discurso feminista, preso ao jargão do gênero, não podia contemplar.
Carolina Ferraz e a operária que ela entrevista não trabalham pela mesma razão. A primeira quer "realizar-se profissionalmente"; a segunda precisa... comer.
No seu notável "Era dos Extremos - O Breve Século 20", o historiador inglês Eric Hobsbawm mostra (entre as páginas 304 e 313 da edição brasileira) como "o feminismo americano demorou a abordar interesses vitais da operária, como a licença-maternidade". Mostra também como o discurso inflamado pela igualdade de condições, embora legítimo, se coaduna com a ideologia liberal do individualismo abstrato. Nem é preciso ser de esquerda para concordar com uma afirmação tão sensata.
Mesmo que de forma dispersa e um tanto truncada, como convém à TV, cada vez mais contaminada pela estética publicitária, "Mulher Invisível" chega a tocar nessas questões mais embaraçosas, que acabam expondo as ilusões e fragilidades do feminismo monolítico. Só por isso, já é um programa de muitas qualidades.
Ainda assim, há algo que incomoda. Talvez um certo ar vitorioso que atravessa como um fio vermelho todo o programa. Mesmo sem nenhuma simpatia pela submissão secular das mulheres, não precisamos festejar por isso o fato de que elas tenham apreendido agora a ser como os homens, competitivas, empreendedoras, executivas.
O lugar-comum nos diz que hoje o homem está se tornando mais "sensível". Basta não ser um tatu para perceber que não é nada disso -que é a vida toda que nunca esteve tão hostil e embrutecida.

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