São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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À margem e por detrás da reunião da Alca

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

É preciso uma dose singular de bom senso e paciência para distinguir o que há de substantivo por detrás dos holofotes do 3º Encontro das Américas ocorrido recentemente em Belo Horizonte. A se acreditar em algumas manchetes de nossa imprensa, o encontro teria sido de suma importância e, mesmo, deixado um saldo positivo para os países do Mercosul.
Quiséramos! Na verdade, essa terceira reunião de ministros da área comercial pouco acrescentou ao que se havia estabelecido nas reuniões ministeriais de Denver (1995) e Cartagena (1996) e nas desse último ano.
Os Estados Unidos continuam buscando impor sua agenda aos integrantes do que encaram como seu quintalejo, como demonstra a rudeza de sua representante comercial Charlene Barshefsky, que, antes da vinda para a reunião de BH, declarou textualmente: "O Mercosul é inconveniente para os interesses comerciais e políticos dos EUA".
Em sua proposta para formação de uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca) que abrangeria todo o hemisfério, excluindo Cuba, os EUA -além de pleitearem a rápida eliminação de todas as tarifas comerciais- querem que lhes sejam garantidos, já no ano que vem: o acesso irrestrito às licitações e contratos de fornecimento ao setor público (ministérios, empresas estatais etc.) dos demais países; instrumentos de interdição e controle do uso da propriedade intelectual no território dos parceiros; e a remoção de quaisquer restrições à entrada de suas empresas no setor de serviços (inclusive financeiros), como já lograram junto ao México e ao Canadá no âmbito de seu acordo particular de livre comércio (Nafta).
Do ponto de vista brasileiro, felizmente houve reação às proposições dos norte-americanos, desta vez não apenas da oposição, mas também do Itamaraty. Os EUA aparentemente não se satisfazem com a posição de detentores do maior saldo comercial junto ao Brasil (US$ 740 milhões apenas no primeiro trimestre deste ano) e suas propostas aparecem como desavergonhadamente leoninas. Endossam a pronta eliminação de quaisquer barreiras tarifárias ou jurídicas com a mesma caneta com que sancionam enormes sobretaxas para os produtos brasileiros (como o aço plano, o etanol, o suco de laranja etc.) cuja concorrência os incomoda e com que assinam leis abertamente protecionistas como o "Buy American Act".
A exigência de total abertura nos serviços a um país como o Brasil, que já vem admitindo em escala crescente o ingresso de instituições estrangeiras no filé de seu sistema bancário, virá acaso acompanhada de provisão para o livre exercício profissional nos Estados Unidos? Num contexto de "forte assimetria na capacitação em pesquisa e desenvolvimento" entre os países envolvidos -como registrou o Grupo de Tecnologia de nossa Confederação Nacional da Indústria-, os EUA demandam poderosos instrumentos de ingerência e fiscalização da propriedade intelectual, a despeito de em anos recentes o Brasil já haver ratificado sua adesão a todos os principais acordos multilaterais dessa área. Onde está prevista a contrapartida de erradicação, por parte dos americanos, das restrições que antepõem à transferência de tecnologia de ponta?
Independentemente da análise dessas questões particulares, a simples consideração do quadro geral das demandas norte-americanas diante da fortíssima e incontestável trajetória de abertura econômica brasileira e sul-americana já nos dá o que pensar. Como conciliar uma tal realidade com os gritos de "eu acho que é pouco" provindos de nosso Big Brother do hemisfério norte?
A explicação está no sucesso do Mercosul -até há poucos anos motivo de pilhérias em Washington- em dinamizar o comércio regional em nosso subcontinente. Às voltas com déficits comerciais persistentes com o Japão -a quem se encontra ligado de forma inextricável tanto financeira como patrimonialmente- e, agora, com uma China comercialmente agressiva e armada até os dentes, o presumido "autor da história mundial do próximo século" (assim o declara a secretária de Estado Madeleine Albright) não poderia deixar passar a oportunidade de apropriar-se de uma boa parte, preferencialmente a que toca ao leão, dos novos fluxos de negócios gerados por seus primos pobres do Sul.
O problema é que a principal economia desta região, a brasileira, ocupa precisamente o espaço que interessaria aos norte-americanos, cujo perfil produtivo e vantagens competitivas em muito se superpõem, sobretudo nas commodities agrícolas e industriais. Ainda pior, do ponto de vista americano, é que nossa inserção no comércio da região se dá por meio do Mercosul que, mais do que uma simples área de livre câmbio, é uma união aduaneira que pressupõe tarifas externas comuns para os produtos de outros países e ainda uma estreita coordenação de políticas que promova a convergência dos ciclos macroeconômicos e das práticas comerciais. Daí a insistência americana, prontamente rechaçada pelos membros do grupo, no esvaziamento do Mercosul em prol da Alca e na adoção de medidas que garantam o deslocamento da competição brasileira na região.
Como prioridade imediata e nos termos ditados pelos norte-americanos, certamente só temos a perder com a implantação da Alca. E não me venham dizer que se trata de uma defesa da "fechadura" comercial -como se nos fosse possível fazer uma tal opção por ato unilateral de vontade, mormente diante do grau de abertura já alcançado. Trata-se, pelo contrário, de decidir que tipo de abertura econômica será a nossa, como prosseguirá nossa inserção na economia globalizada: se mantendo nossa tradição de global trader e capacitando-nos para competir mundialmente por meio de uma pauta de comércio extensa e geograficamente diversificada; ou como um peão do perfil primário-importador inserido num sistema regional de integração subordinada.
Não podemos agir como se nosso primordial interesse residisse na definição de nossas relações comerciais com o Nafta. Essas relações representam um nível intermediário entre o comércio dinâmico, porém ainda reduzido, em termos absolutos, que mantemos no âmbito do Mercosul, e a ampla agenda, atualmente pouco enfatizada (por nós, não por eles), com outros mercados internacionais com quem temos complementaridades a serem exploradas -como a União Européia, que ainda mantém o status de nosso maior parceiro comercial e, naturalmente, com a Ásia.
O Encontro de Belo Horizonte apenas reafirmou posições prévias, marcando uma posição mais firme assumida pelo Itamaraty depois da reunião de Recife e com um pequeno recuo tático (?) brasileiro na admissão do ministro Dornelles de que poderemos considerar negociações substantivas sobre serviços já em 1998, em troca da revisão das sobretaxas aplicadas pelos Estados Unidos sobre nossos produtos.
De positivo, ficou o reforço, cada vez mais nítido, da solidariedade política entre os membros do Mercosul -em especial com a Argentina, que parecia reticente até o recente encontro dos presidentes em Montevidéu.
O Brasil e o Mercosul têm de evitar novas concessões, desfazer a armadilha do (des)ajuste cambial e macroeconômico e estabelecer uma política ativa de inserção global com o resto do mundo. 2005 está logo aí e a "restrição externa" não vai terminar por milagre, nem os EUA vão desistir. Para evitar que o tempo corra contra nós, não bastam, porém, os princípios mais firmes do Itamaraty. É preciso a resistência concreta e o apoio ativo de empresários e trabalhadores.

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