São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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O pecado de todos nós

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os resultados desta pesquisa sobre felicidade são curiosos. Em matéria de felicidade, os brasileiros -quem diria!- estão bem servidos e saciados. Tudo vai bem no "melhor dos países". Ao que parece, cada um resolveu cuidar de seu jardim e a receita deu certo.
Como entender isto? Como entender que, no país dos camelôs, do "polpudo" salário-mínimo e do "pacato e angelical" convívio urbano, as pessoas estejam satisfeitas com o trabalho e mesmo, numa proporção importante, com os salários? Como entender que no país dos meninos de rua e das relações conjugais que, para se manterem, exigem um dispendioso exército de especialistas da alma, a maioria esteja contente com a família e o matrimônio? Como entender, por fim, que, num período em que a migração brasileira para o exterior foi maior do que nunca, a satisfação com a identidade nacional esteja no topo das estatísticas?
Vou arriscar algumas hipóteses. Em primeiro lugar, o que é evidente: o interesse pela vida privada sobrepõe-se, de longe, a qualquer preocupação com a vida pública. Meu salário; meu emprego; minha família; meu sexo; meu sentimento, "mon petit bonheur", enfim, é o que importa. Mas, até aí, tudo é mais ou menos familiar. Sabemos que política e bem comum são coisas do passado; coisas de intelectuais "fissurados" por miséria. Dinheiro, saúde e sucesso são o fetiche da fórmula brasileira da felicidade. Aqui, como em outras ocasiões, os que estão mais perto do inferno são os que se acham com um pé no céu. É de Jacques Tourneur a frase: "Quanto menos vemos, mais acreditamos". Nada como um bem ou um mal que param na soleira da vida, sem se deixarem ver ou tocar. A eficiência do mito é proporcional à distância que o separa da realidade.
Em segundo lugar, Contardo Calligaris, lendo psicanaliticamente Hannah Arendt, fez-nos ver como a paixão instrumental pela atividade burocrática e rotineira está no fundo da perversa banalidade do mal. Queremos estar tranquilos. Se os gritos do vizinho incomodam, tapamos os ouvidos; se a miséria da esquina fere a vista, tampo os olhos. Em suma, podemos fazer da pequenez, grandeza e encontrar brio na impotência, até porque, em tais condições, jogar pedras nos outros é sempre um grande remédio contra a feia cara do conformismo.
Quando os entrevistados dizem "comigo está tudo bem", são "eles" os infelizes, apenas utilizam a surrada ilusão compensadora de que o pecado mora ao lado.
Em terceiro lugar, o mais fundamental: abrir mão de sonhos, sem desistir de sonhar, dá trabalho e pode doer. E quanto mais individualistas somos, mais ficamos vulneráveis às inevitáveis dores do mundo. Desfizemos a teia de solidariedade que, pelo menos idealmente, poderia nos ajudar em momentos difíceis, e o único remédio contra o sofrimento, quando estamos sozinhos, é "endurecer perdendo a ternura".
Se estou folgado no meu pedaço e com minha turma, dane-se quem chegou atrasado e perdeu o bonde! A maioria dos brasileiros está feliz com esse país? Então, "bonne chance"! Fico com a minoria. Fico com os ranzinzas que ainda se horrorizam ao ler nos jornais que cinco garotos, entre 14 e 17 anos de idade, foram fuzilados na Baixada Fluminense porque não tinham 55 centavos para pagar a passagem do ônibus! Um motivo e tanto para se assassinar garotos e para continuarmos nadando em felicidade!
Sei bem que felicidade é um sentimento individual e que a tentativa alucinada de impor à força uma "felicidade coletiva", igual e obrigatória para todos, deu no que deu, desde a Inquisição até a Revolução Francesa e os totalitarismos nazista e comunista. Mas também penso que felicidade individual, concebida como tática de sobrevivência individualista e narcisista, é desvario e destruição cultural a médio prazo.
Essa felicidade, cujos símbolos de realização pessoal são figurões da mídia -independente, é óbvio, do valor humano ou artístico que alguns deles, inegavelmente, possuem- parece, simplesmente, sacralizar o conservadorismo, as injustiças, a apatia e o medo de ver a vida como renovação, inventividade e surpresa. Dela tenho a impressão que João Cabral tinha das belas aparências, em sua "Psicanálise do Açúcar":
"O açúcar cristal, ou açúcar de usina,/ mostra a mais instável das brancuras;/ quem do Recife sabe direito o quanto,/ e o pouco desse quanto, que ela dura (...)/ e sabe que tudo pode romper o mínimo/ em que o cristal é capaz de censura:/ pois o tal fundo mascavo logo aflora/ quer inverno ou verão mele o açúcar".
Por origem e profissão, desconfio dessa felicidade de açúcar cristal, com seu "fundo antigo, mascavo e barrento".

E-mail jfreirecosta@ax.ibase.org.br

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