São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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O triunfo da subjetividade

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Que imagens alimentam os brasileiros sobre si mesmos? A pesquisa do Datafolha traz resultados intrigantes. Apesar de viver e ganhar a vida em condições objetivas precárias, a grande maioria dos brasileiros declara-se feliz e amplamente satisfeita com a vida que leva. Ao contemplar a sua própria existência, embora não a condição alheia, a auto-imagem do brasileiro é o triunfo da subjetividade.
O que contribui mais para a felicidade humana, o real ou o imaginário? O estômago e a posse de bens externos ou a fantasia e o temperamento? A pergunta em si é tão antiga quanto a reflexão ética. O que as respostas colhidas pela pesquisa deixam claro é que a felicidade, no caso brasileiro, tem muito mais a ver com a imaginação e o modo de encarar as coisas do que com a renda monetária e as condições materiais de vida.
As dimensões da felicidade brasileira são múltiplas. Da população economicamente ativa, 65% considera-se satisfeita com o trabalho que exerce e 70% está pelo menos parcialmente feliz com o salário que recebe. A falta de tempo não incomoda: 69% afirmam tê-lo de sobra para fazer tudo o que gostam e 78% dormem à saciedade toda noite. Entre os casados e amigados, 76% sentem-se felizes no relacionamento.
O componente narcísico também comparece. Enquanto 81% dos brasileiros se ufanam de sua nacionalidade, nada menos que 70% estão inteiramente felizes com sua aparência física. Vale aqui, ao que parece, a deliciosa definição proposta pelo poeta carioca Antonio Cicero: "Felicidade é esse acaso que te faz o que és".
A observação de que a felicidade mora mais na imaginação das pessoas do que em variáveis como renda e consumo, é bom que se diga, de forma alguma surpreenderia Adam Smith, o pai da moderna teoria econômica. Ao analisar as crenças ilusórias que movem os homens em busca da riqueza, Smith concluiu: "Naquilo que constitui a verdadeira felicidade da vida humana, os pobres em nada se encontram numa situação inferior à daqueles que pareceriam estar tão acima deles". A felicidade é bem melhor distribuída no mundo do que a riqueza e o poder. Como alertava Dorival Caymmi, "pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz".
Mas o ponto que mais chama a atenção na pesquisa é o conflito entre as representações individuais e coletivas dos brasileiros. Se 65% dos entrevistados sentem-se felizes consigo mesmos, apenas 23% desses mesmos cidadãos acreditam que os brasileiros em geral são felizes. A imagem que temos de nós mesmos, cada um por si, não bate com aquela que temos de nós mesmos como coletividade.
A somatória das auto-imagens das partes não é consistente com a imagem que as partes têm do conjunto que integram. O todo é menor que a soma das partes. É como se cada um encontrasse nos outros, mas não em si próprio, os mesmos traços que os demais encontram nele. Como entender o fato de que a ampla maioria dos brasileiros se julga pessoalmente feliz, quando olha para si, mas, ao mesmo tempo, acredita que a maior parte do nosso povo não é lá tão feliz, quando olha ao redor de si? Até que ponto é possível conciliar essas duas percepções conflitantes? Eis algumas possibilidades de lidar com o aparente paradoxo.
A primeira saída seria questionar a validade da imagem que cada um gosta de alimentar de si mesmo. Ninguém é bom juiz em causa própria; ninguém pode dizer que sabe o que verdadeiramente sente. Por mais infeliz que alguém seja aos olhos dos outros, o indivíduo se defende como pode da dor de admitir perante si mesmo a própria infelicidade. Fazer isso seria baixar a guarda, entregar os pontos e render-se ao naufrágio de uma vida sem esperança. Ter fé na própria felicidade é uma crença da qual poucos podem se dar ao luxo de abrir mão. Reconhecer-se infeliz seria como encarar de frente a própria morte -uma atitude mórbida e dificilmente suportável.
Outra alternativa seria aceitar o que cada um declara de si, mas não o que diz sobre os demais. Só a própria pessoa tem a chance de se conhecer por dentro, de privar a sua vida subjetiva e de sonhar os sonhos que sonha. Cada ser humano vê a felicidade à sua maneira. Como esperar, portanto, que saiba o que se passa na vivência interna dos outros ou possa julgar se são felizes? A mesma Xuxa, por exemplo, foi apontada não só como a pessoa mais feliz, mas também como a mais infeliz do Brasil -uma prova da página em branco que é o outro aos olhos de cada um. A saída do paradoxo seria ficar com a auto-imagem da nossa própria felicidade e descartar as imagens da infelicidade alheia.
Finalmente, pode ser que os entrevistados estejam usando critérios distintos nos juízos que emitem. O filósofo Bertrand Russell relata a ocasião em que foi convidado a visitar um bairro mexicano em Los Angeles. Seus cicerones americanos, ele conta, "referiam-se aos mexicanos como vagabundos ociosos, mas, para mim, eles pareciam estar usufruindo mais de tudo aquilo que torna a vida uma dádiva e não uma maldição, do que era o caso em relação aos meus anfitriões laboriosos e cheios de ansiedade". Quando ele tentou, porém, transmitir isso aos americanos, eles o olharam com total estranheza e incompreensão.
A impressão que fica é que nós, brasileiros, temos um pé em cada mundo. Ao observarmos de fora os que estão à nossa volta, tendemos a levar mais em conta os fatores objetivos e a precariedade da vida material. Aproximamo-nos, desse modo, da atitude dos guias americanos diante dos pobres e acomodados mexicanos -é claro que não podem estar felizes na condição em que vivem.
Mas quando se trata da auto-estima e da vida de cada um, a perspectiva é outra. O ponto de vista subjetivo é soberano. Ao avaliarmos de dentro a nossa vivência pessoal e o modo de estar no mundo, nós nos sentimos felizes -sincera e naturalmente satisfeitos com a vida que temos, tal como os mexicanos retratados por Russell. Infelizes, dizemos, são os outros, não eu. Aos olhos deles, contudo, os outros somos nós.

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