São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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A busca suicida do bem pessoal

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que surpreende na pesquisa da Folha sobre a felicidade no Brasil é o vazio, a ruptura entre o mundo privado e o público. Dizemo-nos felizes, individualmente, mas nossas felicidades individuais não se somam, não se multiplicam. E cada um de nós acha que o resto da sociedade é infeliz.
Essa felicidade egoísta não abre espaço para repartir a felicidade dos outros -melhor dizendo, ela não se nutre da satisfação ou bem-estar alheio. Os outros podem até ser felizes -mas esse fato não contribui para nossa felicidade. O outro é antes um obstáculo a nossa realização, um concorrente e mesmo um inimigo, do que um aliado, um associado.
A pesquisa, assim, confirma o que vários dizem de nossa sociedade: seu individualismo pronunciado, sua incapacidade histórica de gestar uma dimensão coletiva, um espaço público, em que a busca suicida do bem pessoal dê lugar à aliança, ao compromisso, ao trato e ao contrato.
A falência de nossa política é o ponto crucial na percepção que este conjunto de indivíduos, que é o Brasil, tem de si. Eis o desafio que toda proposta política consistente para o país precisará resolver, seja ela a do PSDB, que ora governa, seja a do PT, que aspira ao poder.
E está aí também o limite sério que ambos enfrentam: para o PSDB, o fisiologismo de seus aliados; para o PT, a dificuldade de formular uma mensagem que vá além dos interesses -também particulares- de cada um dos grupos sociais que ali convergem.
Ao mesmo tempo, porém, é admirável que a felicidade esteja mais presente do que imaginamos, na percepção que os brasileiros têm de si. Se nos pautarmos pelo que os jornais dizem do Brasil, não seremos tentados a conceber um povo descrente de si próprio? Pois não é o caso.
Os brasileiros acreditam em si mesmos. Consideram-se felizes, na maioria. Sim, o termo "felicidade" é vago e comporta as mais variadas definições. Mas também constitui um valor afetivamente carregadíssimo, desses que mobilizam a psique, e só pode ser aferido pelo interessado. Daí que seja legítimo medir a felicidade pela auto-imagem de cada um.
Uma idéia nova no mundo
A felicidade foi tema decisivo na passagem do século 18 para o 19. Em 1776, Thomas Jefferson lutou para incluir na Declaração de Independência dos Estados Unidos, entre os direitos humanos básicos, ao lado da vida e da liberdade, "a busca da felicidade". Precisou derrotar John Adams, que preferia o direito à propriedade.
Meio século depois, Stendhal disse que "a beleza é promessa de felicidade". Assim, ele relativizava a beleza, que só teria valor quando desse felicidade: se uma mulher feia me fizesse feliz, seria superior a uma beldade incapaz de proporcionar isso.
O pensamento ocidental, porém, não seguiu as sugestões de Jefferson, no plano político, e de Stendhal, numa esfera mais pessoal. A felicidade ficou relegada às noções vagas, em oposição a outras tidas por mais precisas e sérias: penso no primado que o senso comum e mesmo a reflexão atuais conferem à economia e, depois dessa, à política dos partidos e governos.
Esses dois assuntos cobrem, sozinhos, o essencial dos jornais, ou seja, do que hoje se considera notícia ou realidade. Mas é correto isso? Não será preciso efetuar periódicas correções de rumo, confrontando o que a mídia supõe ser "o que acontece" com aquilo que a sociedade sente como decisivo, primordial? Essa é a importância dessa pesquisa, que descreve um mundo diferente, sob tantos aspectos, daquele que lemos todos os dias.
Sinal de conformismo
Feito esse elogio, gostaria de comentar alguns pontos da pesquisa. Evidentemente, a felicidade não é uma só. Dizer-se feliz no sexo pode merecer crédito (quem melhor que a pessoa para julgar isso?), mas o mesmo não é óbvio para a satisfação com o trabalho, emprego ou salário. Aqui, o descontentamento pode ser sinal de espírito crítico, e a felicidade, de acomodação.
Como, então, discernir quando a felicidade é algo positivo e quando é resignação ao destino? Os críticos do fisiologismo tenderão, certamente, a entender que a maior satisfação dos simpatizantes do PFL com seus empregos, atestada na pesquisa, é sinal de conformismo com a ordem social vigente.
Mas o que se deve distinguir é a felicidade como uma estabilidade interior, que fortalece a pessoa, e aquilo que eu chamaria "contentamento", que remete mais ao objeto externo de satisfação do que a algo propriamente interno. Por exemplo, a felicidade pode referir-se ao trabalho, e o descontentamento ao emprego ou ao salário (e é pena que a pesquisa não tenha separado nitidamente emprego e trabalho, que são coisas diferentes).
"A felicidade é uma idéia nova na Europa", bradava, em plena Revolução Francesa, Saint-Just, querendo dizer que só rompendo com o despotismo do Antigo Regime os homens poderiam ser felizes. Há uma felicidade do rebanho, que é acrítica, e uma felicidade mais forte, da pessoa que em si mesma haure energias para se realizar. É a passagem da primeira à segunda que se mostra revolucionária.
Talvez, assim, o descontentamento (ou a infelicidade) com os políticos ou com o emprego/salário sejam, justamente, bons meios para se chegar à felicidade que realmente importa, e da qual a pesquisa mostra um esboço na satisfação sexual.
Não quero dizer, com isso, que as coisas sejam róseas. Na própria vida sexual há um dado terrível: os homens estão bem mais felizes que as mulheres. Subsiste um sensível descompasso entre os sexos nesse campo.
Além disso, seria preciso cruzar mais fatores na pesquisa, em especial articulando aquelas áreas ditas "sérias" (a política, o trabalho, a família) e aquelas ditas "de brincadeira" (o sexo, o lazer). E me fica uma dúvida. De onde vem, numa sociedade em que o espaço público é tão pobre, a energia que pode tudo mudar?
Há duas hipóteses. Pode estar na brincadeira, no jogo, no prazer, essa energia que falta a uma parte das áreas sérias: pelo menos, àquele sério da vida pública que está na economia e na política. Mas pode ser também que essa energia esteja, quase toda, na vida privada, seja séria (o casamento) ou de jogo. Onde buscar a energia que renove a vida pública, no prazer ou no privado? Eis, mais que a questão, o desafio.

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