São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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O rigor de um carpinteiro

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"O Amante de Madonna & Outras Histórias", do gaúcho Moacyr Scliar, reúne 14 brevíssimas narrativas. A mão de um dos dois ou três mestres do conto no Brasil contemporâneo é tão segura que, no fluir de histórias que começam e terminam num abrir e fechar de olhos, a complexidade de sua arte corre o risco de passar despercebida. Às vezes, o autor não resiste mesmo à tentação de impor uma pausa, chamando a atenção do leitor para os problemas envolvidos num exíguo espaço-tempo.
Assim, em "Teste", Scliar, afetando tédio e cansaço, arremata quase mecanicamente a trama de uma cartomante que, valendo-se de suas informações privilegiadas, pretende dar o golpe do baú num cliente rico, para, logo em seguida, alinhavar uma série de perguntas que são, a rigor, a pauta resumida de uma verdadeira teoria do gênero que pratica. Aliás, a chave de seu "métier" -como ele o demonstra- é criar o clima propício para que surjam as perguntas. E a consumação, naturalmente, está em não lhes dar resposta -pelo menos, não as esperadas.
Embora pertença oficialmente à categoria "prosa de ficção", o conto, na sua forma mais acabada, é algo essencialmente primitivo, no sentido de vir primeiro, de ser originário, e nisso se aproxima antes da poesia do que dessa invenção recentíssima, o romance.
O verdadeiro conto exige extrema precisão e a margem de manobra que permite é mínima. Como uma espécie de administração de recursos obrigatória e propositadamente escassos, esse gênero requer uma potencialização de cada detalhe, algo que, na coletânea em questão, evidencia-se no uso que o autor faz da profissão do protagonista do conto-título.
Um carpinteiro do interior sonha acordado que a cantora americana dará, em sua cidade, um improvável, ou melhor, impossível show durante o qual, convocado para fazer um reparo de emergência no cenário, ele não só chamaria a atenção dela como conquistaria o seu amor. Caindo, porém, "na real", ele passa a pensar na moldura que decerto fará para um pôster de Madonna a ser colocado em seu quarto.
É pelos trilhos de seu ofício que o pensamento do carpinteiro desliza livremente entre a fantasia dourada e a realidade mesquinha, numa narração que, podendo (balzaquianamente) chamar-se "Esplendor e Miséria da Carpintaria", remete, como que por meio de um eco fantasmagórico, a tantas outras histórias antigas nas quais um humilde artesão, por ser -na hora certa- bom no que faz, acaba desposando alguma princesa.
Ecos que nem esse, além de nuances, "understatements", situações e paradoxos imprevistos, multiplicam-se num livro no qual -dos devaneios assassinos de um homem bem amado ("Morte Experimental da Amada") ao desamor que, para um outro, revela-se grotescamente por meio do exame das fezes (devidamente conservadas no vaso sanitário avariado de um escritório) de sua amada e de seu rival; da encenação que, com consequências graves, toma conta da vida real ("No Tribunal do Povo", "Os Efeitos da Orfandade Desamparada") à minúscula metáfora encenada que a salva ("A Pequena Vida dos Pêlos"); das pequenas tragédias ("O Dedo") às grandes ("O Índio", que remete, talvez premonitoriamente, a eventos recentes de Brasília)- Moacyr Scliar oferece um rico e variado mostruário de tudo o que se pode fazer com e no conto.

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