São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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Mares sombriamente navegados

BENJAMIN ABDALA JUNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Um Amor Cortês" (1996), de Filomena Cabral, completa uma trilogia da autora, que inclui "Madrigal" (1993) e "Angola, no Entretanto do Tempo" (1994). Serve de motivo recorrente a esse último romance a conhecida imagem do anjo da história de que se valeu Walter Benjamin para a análise de Paul Klee, em suas "Teses sobre Filosofia da História". É dentro dessa perspectiva que Angélica -a personagem que salta de "Madrigal" para "Um Amor Cortês"- sofre as tentações desse "mensageiro da história".
É entre a materialidade das contingências históricas que envolveu a formação do Estado Nacional português e a potencialidade dos sonhos entreabertos pelas Descobertas que Filomena Cabral analisa a maneira de ser de seu país. Dialoga, nesse sentido, com monumentos literários de Portugal e também com a tradição cultural européia, num vôo livre que vai da antiguidade clássica à pós-modernidade.
Centra-se a escritora num mítico tempo cortês da época das Descobertas e -pelas margens da história- procura reler o devir da portucalidade. Fratura o tempo, para tanto, aproximando formas literárias de épocas diversas dentro de um continuum que associaria o amor à música -um tempo utópico capaz de atualizar impulsos semelhantes em épocas diferentes. Sua perspectiva é similar às de outras ficcionistas portuguesas contemporâneas quando procura registrar o jogo de amor das mulheres-sós de seu país diante do afastamento dos homens -envolvidos subsequentemente na Reconquista, nas Cruzadas, nas Descobertas, na Colonização e, enfim, na Imigração.
Registra-se assim toda uma mobilização nacional ao curso da história para a conquista de um paraíso que sempre teimou em deslocar-se para um depois, na esfera material ou espiritual. Entretanto essas orientações temporais retilineares (tradição cristã ou da idade moderna) revelaram-se, ao final das contas, circulares. No ponto de partida das Descobertas, lê-se em "Um Amor Cortês", estavam os mouros; quando afinal se chega ao final do percurso das navegações -nas assim chamadas Índias- lá se encontravam novamente os muçulmanos.
Uma das vozes proféticas do romance avalia circularmente o "factum" nacional português, sempre com um retorno ao ponto de partida: "Que aos Brasis aportaremos, que essas terras possuiremos, e mais muitas, mas chegados a 2000, já nada disso teremos. Para quê ter, se para perder?" (pág. 43).
A consciência da contradição leva Filomena Cabral a utilizar com frequência imagens no espelho, por meio das quais suas personagens observam não apenas um "cu" celestial, mas também um "outro" demoníaco, o verso e o reverso. Imagens demoníacas se embaralham, assim, com celestiais, propiciando comutações e fusões de papéis. Essas tensões, a partir da intimidade individual, ganham dimensão maior nas ações coletivas. Estão aí, como procura desenvolver, as bases do jogo do amor cortês, núcleo simbólico da efabulação do romance.
Dessa forma, dentro do jogo geopolítico europeu, Portugal -"por mares nunca dantes navegados"- inicia o processo de internacionalização da Europa. Sobrevém, séculos depois, no outro pólo desse percurso, a tomada de consciência dos povos colonizados -a consciência de Calibã (a escritora vale-se da matização anticolonial dessa personagem de "A Tempestade", de Shakespeare). Da internacionalização chega-se hoje à globalização, o mundo das grandes corporações -registro reverso ao progressivo do início do percurso: como aponta Filomena Cabral, se anteriormente os povos colonizados proclamaram os seus "gritos do Ipiranga", não seria, então, o momento de Portugal fazer o mesmo em relação à Europa? Entretanto, observa: "O grito do Ipiranga português, em relação à Europa, jamais será alcançado: foram-se os tempos temerários das incursões em campo inimigo em nome da Grei, agora, as batalhas são, em parte, pela língua portuguesa..." (pág. 215).
Após o império, restou a língua. A narradora, não obstante, registra essa situação diferentemente: "O império que nos resta, enquanto portugueses, é o da língua" (pág. 44; o itálico é da autora). Como se sabe, a língua portuguesa constitui um sistema falado por mais de 170 milhões de pessoas. O sistema, enquanto sistema, é abstrato, tendo sua existência concreta nas formas variantes: uma variante brasileira, moçambicana, angolana, portuguesa etc.
Não há, pois, um paradigma nacional e variantes dele decorrentes. De qualquer forma, o sistema (conjuntamente com as afinidades culturais de natureza comunitária a ele associadas) contribui para uma melhor afirmação de Portugal diante da contextualidade européia.
"Um Amor Cortês" constitui uma narrativa híbrida, mesclando o narrativo ao ensaístico, o ficcional ao histórico, o prosaico ao poético, o literário às formulações alusivas a outras artes. Essa a sua razão de ser. Pela natureza híbrida da obra, muitos dos pontos de vista da escritora se explicitam no decorrer do relato. O efeito previsível dessas intrusões é o deslocamento da representação da efabulação para o seu autor, atenuando-se, no caso desse romance, a ênfase nos traços modelizadores mais implícitos.
É evidente que o autor pode explicitar o que pensa dentro e fora de sua obra. Afinal, ele também pode dinamizar o espetáculo, desde que seja um bom ator. Há, além disso, bons exemplos da produtividade do diálogo autor-leitor em torno da recepção na literatura portuguesa contemporânea.
Entretanto, o posfácio "hors-texte" de "Um Amor Cortês", mesmo para um leitor mais distraído, afigura-se como uma espécie de legenda para as imagens do romance. Um "fora do texto" (ou, se se quiser, um "dentro do texto" implícito nos processos discursivos do romance) talvez editorialmente desnecessário e que ficaria melhor, ao que tudo indica, numa coletânea de ensaios.

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