São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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O escritor contra a língua

VILMA ARÊAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Pãos ou pães é questão de opiniães", afirma o ditado. E poderíamos ficar por aqui. Mas o artigo de Marcelo Coelho sobre o escritor Francisco Dantas, "Pastiches Parnasianos", no Mais! de 6 de abril, me perturbou, o que me leva a querer conversar sobre o assunto, embora com o atraso da falta de tempo.
A perturbação se deve em parte a discordâncias, em parte a dúvidas. Por exemplo, não posso concordar com a afirmação de que exista carência de bons romancistas no Brasil. Minha impressão vai na direção oposta. O que observo é que vem se diversificando a produção de textos ficcionais entre nós, havendo-os para todos os gostos: tradicionais, modernos, experimentais, obedientes à moda, esparramados, contidos, ingênuos e não. Acho, inclusive, que começa a haver por aqui uma boa produção de livros médios, que, a par do sucesso, tem sua importância na formação e manutenção dos sistemas literários. Pelo menos é o que achavam Mário de Andrade e Lúcia Miguel-Pereira, com os quais concordo.
Quanto aos que considero bons, a produção também é diversificada. Tão diversificada que um escritor como Jean-Claude Bernardet se dá ao luxo de escrever uma obra-prima como "A Doença, Uma Experiência" (Companhia das Letras), e outros livros apenas habilidosos. A variedade da produção faz com que a crítica não dê conta dela ou, por outro qualquer motivo, muitas vezes a deixe de lado. Falo evidentemente da crítica visível e não dos trabalhos escolares, contra os quais também não vale a pena empunhar espadas.
Mas não vou enveredar por esse caminho, que me levaria muito longe e me forçaria a omissões injustas. Entre os novíssimos, cito apenas dois, que considero acima da média: "O Motor da Luz", de José Almino, livro "cheio de elipses e de força lírica", como diz o Francisco Alvim, e "Os Corpanzis", do estreante João Inácio Padilha, curiosíssimo livro que passou batido, aliás, muito mal editado pela L&PM, cheio de gralhas.
Voltando ao nosso Francisco Dantas, o que me deixou dúvidas e surpreendeu na avaliação de Marcelo Coelho é que, inapelável e peremptória em alguns trechos, muitas vezes contém em seus próprios termos seu oposto. Um exemplo é a afirmação de que, estruturando-se a "Cartilha" em torno da decadência de uma família rica, o monólogo interior dos personagens usa "os clichês e o mau gosto de uma 'literatice' de época, que conformava o pensamento daquelas pessoas". Mas essa adequação é um traço positivo. Ou não?
Outro ponto: afirma-se que "Os Desvalidos", obra de "mera imitação" e "extemporânea" de Guimarães Rosa, é "sem dúvida competente". Outro ainda: apesar de ter "habilidade estilística", "virtuosismo léxico", "variedade vocabular", essas qualidades da "Cartilha" são neutralizadas porque o autor mostra "empenho em demonstrar tanta habilidade", descambando para o verborrágico, para o kitsch, para o mau gosto, para o "narcisismo estilístico", caracterizado pela presença de repetições e alongamentos da frase.
Mas essa meada, segundo penso, pode ser tomada pela outra ponta. Li, por exemplo, um comentário de José Paulo Paes a "Os Desvalidos" na época da publicação do livro, aliás guardei o recorte, no qual o crítico e poeta julga oportunos o exotismo e o inusitado de muitas das construções estilísticas de Dantas porque iriam na contramão da pobreza, das repetições e sensaboria de uma espécie de "língua geral" que existiria nos meios de comunicação de massa. Nesse mesmo rumo, sem negar uma espécie de anacronismo nessa prosa, Paes a avalia positivamente na medida em que serve de corretivo a "certo abastardamento vernacular da nossa prosa de ficção mais recente".
Bom, também acho esta última afirmação geral demais para ser indiscutível. Mas José Paulo, de maneira feliz, inclui Francisco Dantas, com todas as provas e exemplos, no filão da ficção nordestina dos anos 30, capaz de oferecer bons frutos "a quem saiba lavrá-lo com engenho e arte".
O curioso é que o próprio Francisco Dantas, autor perfeccionista, tenaz e consciente de seu próprio trabalho, em entrevista a um jornal sergipano, afirma ser o anacronismo, ou aparente anacronismo, de sua prosa derivado da intenção de se colocar à margem do gosto e da demanda atual. Ele sofre de uma espécie de teimosia criativa que considero, no mínimo, estimulante.
Se esse puro desejo não assegura, claro, a qualidade da obra, não deixa de dificultar sua recepção, a que se junta o que ele chama de "enfoque interiorano, rural", que pode espantar "feito chuva grossa em feira livre". Principalmente o leitor potencial que "está mesmo" em São Paulo e Rio de Janeiro. Os escritores da província não têm condição de influir nacionalmente em coisa alguma, "mormente na formação do gosto literário". Certo ou errado? Acho que certo.
É também difícil discutir neste espaço a imitação de Guimarães Rosa ou o pastiche. Mas talvez Marcelo Coelho, assim, procure caracterizar melhor a sensação de estranhamento, de chateação e de falsidade, à falta de termo melhor, que a frase de Dantas pode causar. De um lado, ele tem razão. A frase é mesmo estranha, construída, não é natural, se é que algum ingrediente ficcional pode ser caracterizado desse modo, não é macia, tem uma pedra no meio desse caminho (sem blague, juro), pode enjoar se não estamos com todos os sentidos ligados.
Aliás, a ficção de boa qualidade muitas vezes não diverte, ao contrário, pode aborrecer, talvez porque dê muito trabalho, frequentemente leva a um ponto radical as possibilidades de construção da língua, caminha-se lentamente, às vezes não existe nenhum atalho (nenhuma intriga) etc. Se vamos nos opor a isto, atiramos pela janela grande parte da produção de qualidade de nossa época, a começar pelo grande Beckett.
Quanto ao parnasianismo, pode ser um rótulo que cobre coisas diferentes. Existem parnasianos e parnasianos. Existe aquela bobagem de querer ser palmeira, habitar num píncaro azulado, e existe, por exemplo, o esquisitíssimo Augusto dos Anjos, que o João Cabral aproxima de Cesário Verde; só que este, com sua "água de vidro" que "escreve lavando", se opõe também ao outro que encarde tudo com o rio nordestino. Trata-se de tinta e não de água, que ignora a Fábula, "escreve negro tudo", tem "timbre fúnebre" e "dureza da pisada".
Talvez o parente próximo de Dantas seja mais Augusto dos Anjos que Guimarães Rosa. São autores também difíceis de se citar aos pedacinhos. Perde-se a intenção e o timbre falseia. Se alguém ouvir, por exemplo, destacado de seu conjunto, que "a noite se esparrama contra o céu como um paciente anestesiado sobre a mesa" (perdoem a tradução), e ficar por aí, poderá achar o verso excessivo, de mau gosto etc e perderá a famosa canção de amor escrita por T.S. Eliot.
Não é verdade que, em se tratando de literatura, escreve-se com a língua, mas necessariamente contra ela? Parece que dizer o que a língua sabe dizer não é escrever. E aí não são poucos os riscos que se corre, inclusive o da ilegibilidade.
Quando um autor se torna legível? Décio de Almeida Prado me contou que, em seu tempo de jovem, ninguém conseguia ler os modernistas, que viviam presenteando os amigos com os próprios livros. Cleonice diz que Jorge de Lima fazia o mesmo no Rio. Nos anos 60, Bandeira já era legível, embora ninguém o leia como o Davi, mas o Drummond, não. Dizia-se que era duro e ainda tinha aquela pedra. Clarice Lispector pertence ao mesmo rol, o que parece incrível hoje, com toda essa agitação ao seu redor. Diziam que sua sintaxe esquisita se devia ao fato de ser estrangeira. Ela assinava C.L. em "Senhor" e achavam que era Carlos Lacerda, pasmem.
Acho, Marcelo, que o que me incomodou mesmo foi o tom. Demolidor demais e, por isso mesmo, injusto. Nem a orelha do livro escapou. Não fui eu que a escrevi, é bom que se diga, mas assinaria a frase que abre o comentário: "Rememoração e remorso são as duas experiências humanas fundantes dos personagens-narradores desta 'Cartilha do Silêncio'±". Como se pode ver, a frase solta parece arbitrária sem o ser. Há que ler o livro para conferir.

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