São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997 |
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Os descaminhos do aprendizado
OLGÁRIA CHAIM FÉRES MATOS
A educação se constituía como um fio orientador entre as gerações. Ela encontrava na palavra grega "paidéia" sua melhor expressão. Para ela, se requeria a "skolé", a escola-espaço do tempo livre disponível ao exercício daqueles saberes considerados modelares para o aperfeiçoamento moral e da vida pública. Foi Sócrates quem marcou, para a cultura ocidental, a prática da "paidéia". O filósofo nos faz descobrir -pelo "conhece-te a ti mesmo"- fraquezas e dons a fim de desenvolver inclinações naturais virtuosas e construir-se. A máxima socrática significava: "Evita fazer coisas com as quais não possas conviver", recomendando a prudência. Retornemos àquela tradição que, apesar de tudo, nos é a mais próxima: a educação iluminista e republicana -que reconhecia na educação o direito, o mais inalienável, da cidadania. O Iluminismo na educação visava a maioridade do homem moral e a do cidadão, o fortalecimento de uma racionalidade de moderação e tolerância, da dignidade humana para a "paz perpétua". A lei era o suporte simbólico que rompia com o "ancien régime" e sua política do "favor". Os valores da liberdade, igualdade e fraternidade significaram a abolição do privilégio educacional -pela educação pública e gratuita, pois a escola procurava a formação do espírito. Nela, a criança começava a fazer a experiência da constituição e ampliação do espaço público e de sua própria humanidade, no diálogo entre as diferenças, sem discriminação da ordem econômica ou política, religiosa ou étnica. À pergunta "educação para quê?", convergia outra: "Para onde ela deve conduzir?". Na perspectiva da parábola socrático-platônica, ela deveria preparar a saída para viver fora da caverna -lugar de obscuridade onde, de início, os homens só vêem sombras projetadas numa tela; na sequência do aprendizado, poderão olhar as próprias coisas à luz mortiça do fogo e, por último, abandonar a morada escura para ingressar em uma nova aventura, agora por si mesmos, sem o auxílio do filósofo-pedagogo. Substituindo a noção de crise pelo diagnóstico de uma mutação do imaginário político e social, o cidadão converte-se em consumidor (tanto que um dos únicos direitos ativos e, assim mesmo, em São Paulo, é o Procon). Com a fragilização da dimensão simbólica da lei, confunde-se direito com privilégio e tem fim o Estado de direito -com o consequente retorno da "razão de Estado", redimensionada. Esta significava, no século que a viu nascer -o 16-, entre outras coisas, a infalibilidade dos governantes e a possibilidade de suspensão das leis positivas em nome da necessidade pública e do bem comum. Conversão, ainda, da "res-publica" em imagem pública, como forma moderna da política. Que se pense nos indicadores dessa modernidade e na revolução pós-industrial. Recursos eletrônicos, na ausência de um projeto definido sobre o que é a educação e com professores desmotivados e sub-remunerados para se reescolarizarem e os utilizarem, todos os esforços tendem a permanecer no plano do que Guy Debord denominava "sociedade do espetáculo". A isso associa-se a determinação de todas as esferas da vida pela economia, tomada como única maneira de pensar e de ser. O empobrecimento espiritual das democracias resulta, assim, na uniformidade de pensamento, que deve agora acomodar-se ao ritmo acelerado das transformações tecnológicas. Estudantes e professores não mais dispõem do tempo necessário para refletir sobre o que escrevem. Nasce uma relação peculiar da escrita com o tempo: maximização da produção, otimização dos recursos, trabalho sob o ponteiro do relógio. Tudo passa a ser avaliado pelo binômio tempo ganho-tempo perdido. Atitude que transita para a leitura. Calcula-se o tempo de modo a escrever apressadamente e a ler rapidamente, sem meditação ou prazer. Nietzsche cunhou a expressão "cultura filistéia" para falar de sua conversão em consumo e de seus corolários: incultura, credulidade no caminho irreversível das coisas e, sobretudo, o mesmo raciocínio para abordar riquezas materiais e bens culturais. A economia -estatística e números- é um poderoso redutor do pensamento. O que importa é, assim como no comércio, quem e quantos consomem. Essa "cultura média" é hoje aquela veiculada pela mídia e por professores de "licenciatura curta" (mestres "curtos", mas de baixo custo) -o que, no entanto, não dissipa a "alta cultura" letrada, que retorna à dimensão de privilégio de uma elite. Antiquada, a trilogia humanista da liberdade, igualdade, fraternidade adquire sentido inédito. A igualdade de direitos -a mais nobre afirmação do ideário iluminista- torna-se "direito de igual acesso à informação". Liberdade vem a ser interatividade na comunicação, propiciando ao homem, ao indivíduo, ao cidadão, "liberdade de intervenção" -da qual se encontra excluído pela intransitividade das tecnologias anteriores. Inclua-se aqui a "liberdade" do "zapping". Quanto à fraternidade, pode ser entendida como "convivência virtual". "Viver", anotava Hobbes no século 17, "é mais do que sobreviver". E a máxima kantiana ponderava: "Todas as coisas que podem ser comparadas podem ser trocadas e têm um preço. Aquelas que não podem ser comparadas não podem ser trocadas. Não têm preço, mas dignidade". Se a modernidade revoga esta nossa humana condição, substituindo-a pela pergunta "quanto custa" -um idoso, um deficiente, um doente-, ela constitui uma sociedade que, para utilizar uma expressão de Espinosa, "não merece mais o nome de Cidade, mas antes o de solidão" ("Tratado Político"). Texto Anterior: Um virtuose iconoclasta Próximo Texto: Festival reúne autores em Medellín Índice |
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