São Paulo, domingo, 25 de maio de 1997
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Um virtuose iconoclasta

DAVIV DUBAL
ESPECIAL PARA A FOLHA

A mais animadora novidade no mundo da música é o fato de o pianista João Carlos Martins ter concluído a monumental tarefa de adaptar toda a obra de Bach para o teclado, em 20 CDs Concord Concerto. No atual universo pianístico, o brasileiro João Carlos Martins é um dos virtuoses mais controversos, iconoclastas e surpreendentes. Como o seu gigantesco país, Martins apresenta grandes contrastes e erupções de violência, paisagens deslumbrantes e uma vasta gama de recursos. A mim, parece que o modo de tocar de Martins reflete as idiossincrasias temperamentais de sua terra natal.
João Carlos Martins, que já em início de carreira mergulhou na universalidade da música de Johann Sebastian Bach (1685-1750), passou sua existência tragicamente romântica dedicando à obra do compositor uma paixão que desafia a fadiga. É de fato justo afirmar que Martins se enfeitiçou, se intoxicou, se deixou hipnotizar pelo imortal mestre de Leipzig.
Desde sua estréia, em Nova York, no início da década de 60 e suas primeiras gravações comerciais, Martins, com sua maneira de tocar Bach, vem cativando (e às vezes irritando) os aficionados do compositor. Independentemente, porém, da corrente de que façam parte, poucos ouvintes conseguem resistir ao espírito apaixonado, à honestidade da abordagem e à completa animalidade do pianista brasileiro. Seu Bach é psicodélico.
Um elemento que me atrai continuamente em Martins é sua habilidade de anunciar no piano os limites externos dos meios de expressão do próprio Bach, da mais pungente tristeza à alegria plena. Alguns podem questionar ou debater os métodos adotados por Martins, seu descaso pelos riscos. Ouvintes extremamente sensíveis podem acusá-lo de auto-indulgência naquilo que lhe proporciona prazer, e é possível perguntar quanto as concepções de Martins se afastam das intenções de Bach. O compositor se alarmaria com os excessos nos "tempi" de Martins, suas articulações de teclado, absolutamente extraordinárias em termos de variedade e controle dos dedos, com seu fôlego prolongado e sua grandiloquência? Ou se deliciaria com a maravilhosa flexibilidade de suas próprias criações? Como reagiria à enlevada exaltação religiosa de Martins nas fugas mais profundas de "Cravo Bem Temperado" ou a sua performance no mais detalhado estilo alto barroco, por exemplo, na majestosa tocata da "Sexta Partita"?
Apresentei seleções desses CDs aos meus alunos da Juilliard School de Nova York e da Manhattan School of Music, que reagem a elas de maneiras muito díspares. Seguramente Martins não é nenhum admirador do modo de tocar clínico dos conservatórios, e esses estudantes da tradição e do pedantismo na interpretação de Bach estão, para dizer o mínimo, chocados. Um jovem pianista chegou a pedir licença para deixar a sala. Outros, porém, permaneceram sentados, literalmente boquiabertos. Um dos melhores entre eles gritou: "Muito bem, sr. Martins, é assim que se toca!". Outro comentou: "Eu pensava que Tureck e Gould fossem os detentores da última palavra na adaptação de Bach para piano, mas o sr. Martins é de outro planeta". A maior parte dos jovens pianistas teve a impressão de que essa audição mostrou-lhes um caminho para a aquisição de maior liberdade na execução de Bach no qual a individualidade não causa escândalo.
Bach simplesmente aterroriza os jovens pianistas de hoje em dia. Em determinada época, o mestre alemão era o arroz e feijão (abriu metade dos recitais de piano do mundo). Atualmente, muitos pianistas abdicaram dessa sabedoria eterna em uma concessão aos espinetistas, que afirmam que Bach deve ser tocado com os instrumentos para os quais compôs. Longe vão os dias em que os pianistas estavam absolutamente convencidos de que o compositor teria adorado o piano moderno com sua monstruosa moldura de ferro. Esse período chegou ao fim quando, na década de 30, a celebrada espinetista Wanda Landowska, depois de ouvir a interpretação que Harold Samuel fez de Bach em um recital, passou um pito no gentil pianista inglês por tocar Bach em seu instrumento. Samuel humildemente respondeu: "O que posso fazer, sra. Landowska, se eu não gosto de espineta?".
A controvérsia não terminará, mas, com o trabalho de Glenn Gould e jovens pianistas como Andras Schiff, a execução de Bach ao piano deixou de representar uma ameaça tão séria aos espinetistas e, a bem da verdade, muitos espinetistas não conseguem projetar a ampla humanidade que Bach exige. Deve-se lembrar que Wagner chamou Bach de "o maior milagre da música", e quem o considera o maior compositor de todos os tempos está em muito boa companhia.
Obviamente Martins pensa assim e ouvir esse tesouro em algo tão compacto quanto um CD é realmente encantador, porque Bach alcançou o divino e, ao fazê-lo, ofereceu ao recriador criativo uma flexibilidade que um compositor jamais concedeu a seus intérpretes. Ouça Martins com atenção, porque ele toca em muitos níveis de consciência. Com sua grande conquista, proporcionou-nos a abertura de um importante capítulo no estudo da obra de Bach. Imagine a íntegra de "Cravo Bem Temperado", das "Tocattas", das "Partitas", das "Suítes Inglesa e Francesa", dos concertos, das "Variações Goldberg" e muito mais para apreciar e estudar, em performances que no futuro serão classificadas entre as mais surpreendentes avanços na história da fonografia. Esses CDs serão obrigatórios nas bibliotecas de colecionadores e "connoisseurs". Eu congratulo João Carlos Martins por sua persistência, sua força e sua paixão.

David Dubal é professor de piano na Juilliard School e autor de "The Art of the Piano".

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