São Paulo, sábado, 31 de maio de 1997
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Monogamia, o problema que importa

MATINAS SUZUKI JR.
DO CONSELHO EDITORIAL

Kelly Flinn tem coragem. Ela teve uma brilhante carreira na força aérea dos EUA e foi a primeira mulher a pilotar um B-52.
Kelly Flinn era amante de um técnico de futebol casado. O relacionamento foi descoberto, e ela teve que deixar a Aeronáutica americana, além de outras punições.
O caso esteve nos jornais e na TVs americanas e é um exemplo, entre tantos outros, inclusive no Brasil, de como as leis e as sociedades tratam a quebra da monogamia oficializada no casamento.
A monogamia (não necessariamente o casamento sancionado pela lei e/ou pela religião) é o tema do livro do psicanalista Adam Phillips que a Companhia das Letras lança no Brasil.
O título do livro é esse mesmo, um simples (e ao mesmo tempo tão complicado...) "Monogamia".
Quem leu a obra anterior de Phillips lançada no Brasil, também pela Companhia das Letras, "Beijos, Cócegas e Tédio" pôde perceber que ele é um psicanalista que desperta interesse mesmo entre os não-técnicos ou os não-familiarizados com os termos e procedimentos da psicanálise (além de escrever claro, a maneira como ele aborda os conceitos psicanalíticos deixa os seus pontos de vista perfeitamente compreensíveis para os não-iniciados).
Ele teve também a manha de eleger temas (as cócegas, o beijo, a solidão, por exemplo) que são atrativos não só para aqueles que ficam dos dois lados do divã, mas também por aqueles meramente interessados nas prateleiras que guardam os livros, de todos os gêneros, sobre os relacionamentos afetivos.
Darling
Aos 43 anos, Adam Phillips é uma espécie de "darling" da psicanálise britânica. Sua trilogia de ensaios (além de "Beijos...", "Flerte", a ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras, e "Terrores e Especialistas") e "Winnicott", uma biografia do psicanalista britânico D. W. Winnicott, representaram um sopro de juventude temática e estilística no ambiente psicanalítico que andava, na definição de Will Blythe, da revista "Esquire", meio "deprimido".
Para o psicanalista carioca Jurandir Freire, "o trabalho de Adam Phillips é extremamente inteligente, criativo e, sobretudo, tem o gosto, hoje raro, do melhor e mais vigoroso Freud" (veja o seu comentário sobre um dos aforismos de Phillips à pág. 4-3).
Ele vive (não é casado) com Jacqueline Rose, "crítica de literatura psicanalítica", como foi definida pela revista "Mirabella", e adotou uma criança chinesa. O autor de "Monogamia" deixou o trabalho com crianças no Charing Cross Hospital, em Londres, para dedicar-se exclusivamente à atividade de escritor.
Adam Phillips é inglês. A questão da monogamia sempre foi cara aos britânicos. Alan Macfarlane, na sua "História do Casamento e do Amor", mostra que a monogamia foi originalmente predominante entre romanos e germânicos, e mais tarde, entre os ingleses (foi declarada crime passível de morte, a partir de 1604).
Com Macfarlane aprendemos que a norma da monogamia não era usual entre os povos (Jack Goody: "No que diz respeito às culturas humanas, a monogamia é que é rara, a poligamia sendo comum"), mas difundiu-se na Europa que, por sua vez, espalhou-a para o mundo.
Montesquieu atribuía ao clima a poligamia: nos lugares quentes as mulheres envelheciam depressa, daí a necessidade de os homens terem mais de uma mulher.
David Hume dizia que a poligamia (na verdade, muito mais a poliginia -homem com mais de uma mulher- do que a poliandria -mulher com mais de um homem) estava relacionada com a idéia de uma soberania do macho, que ele classificava como uma "usurpação". A monogania reduzia a diferença entre os sexos.
A antropologia moderna procura estabelecer ligações entre a poligamia e a necessidade que algumas sociedades têm de procriar e de aumentar a força de trabalho.
Ao contrário, o crescimento da norma monogâmica estaria relacionado à diminuição do desejo de ter filhos, ao aumento dos vínculos familiares, ao maior equilíbrio entre os sexos, ao amor romântico.
Cristianismo
Atribui-se também a expansão do exclusivismo monogâmico ao cristianismo, embora Macfarlane mostre que o cristianismo nem sempre foi adepto da monogamia.
Abrãao, um "perfeito cristão", teve duas mulheres. Ele cita Edward Westermarck, autor do livro "Casamento": "Embora o "Novo Testamento" encare a monogamia como forma normal e ideal de casamento, não chega a proibir expressamente a poligamia, exceto no caso de um bispo ou diácono".
A tradição brasileira é, como sempre, ambígua nesses casos.
A novíssima "História da Vida Privada no Brasil" mostra à exaustão que a dualidade monogamia/poligamia escondia posições de classe: a elite branca e européia cultivava o valor civilizador do casamento entre seus pares, enquanto na base da sociedade caía-se de braçada na poligamia e na relações pluriétnicas.
Phillips evita o discurso fechado para escrever sobre um tema (em nossos dias) tão espinhoso.
Ele adota o estilo aforismático, aquele que na opinião de Karl Kraus ou diz meia verdade ou diz verdade e meia (falar da monogamia de maneira aforismática é mais do que uma posição; trata-se de uma imposição do tema).
Kraus bateu no fígado do estilo. Nos dias de hoje, fragmentários e facilitadores, o aforismo, partindo de um espírito médio, pode ficar apenas na meia verdade, no meio dito, no mais ou menos.
A técnica sentenciosa, não se comprometendo com comprovações, aceita qualquer leitura, mesmo as mais pateticamente simplificadoras (as piores são as afetadamente "emocionais" ou "dramáticas").
Por esse lado, o interessante livrinho de Adam Phillips corre o risco de ser contaminado pelo vírus da banalização involuntária que contaminou as leituras do "Fragmentos do Discurso Amoroso", de Roland Barthes -risco maior quando se pensa no número de pessoas que estão
procurando alguma explicação para a insatisfação que têm com o próprio casamento.
O duro de um livro de aforismos é que ele nunca mata a sede: ao contrário, ele aumenta a vontade de beber. Não se deve ir ao pote de Adam Phillips vagando atrás de alguma certezas sobre a questão da monogamia. No mínimo, ele aumentará as suas dúvidas.
É claro que não há como fugir do papai-mamãe freudiano. "No começo -diz Phillips no aforismo 38- todo filho é um filho único". E prossegue: "Nossas primeiras intuições (...) são monogâmicas: de privilégio e de privacidade, de exercer a propriedade e de pertencer. A substância de que será feita a monogamia".
Um pouco mais à frente (no livro, no aforismo 75, e, infelizmente, também na nossa cronologia pessoal) chega-se ao trauma: "A monogamia como ponto de partida e como nosso ponto de chegada é uma imagem de encomenda, por demais arrumada e simétrica para a bagunça em que consiste propriamente a vida de alguém".
A bagunça vem com a traição dos pais: "Partindo da monogamia, o primeiro conhecimento que nos chega é da infidelidade".
Daí, escreve Phillips: "Temporariamente a mãe pode ser tudo para um filho, mas o filho não tem como poder ser tudo para a mãe. Ele não pode alimentá-la ou satisfazê-la sexualmente, ou ter conversas adultas com ela. Do ponto de vista que começa a se formar no filho a mãe é -como o pai em breve passará a ser- um modelo de promiscuidade. Ela tem mil coisas a fazer. Ela conhece outras pessoas".

LEIA MAIS sobre "Monogamia" à pág. 4-5

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