São Paulo, sábado, 31 de maio de 1997
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AFORISMOS

Um aforismo pede sempre a sua confrontação. Leia a seguir a opinião de dois psicanalistas e um filósofo que, a pedido da Folha, comentaram três aforismos do livro "Monogamia".

"A pessoa é inevitavelmente fiel ao cadáver que cresce dentro de si. É isso que torna a infidelidade um enigma tão irresistível, e pode levar a monogamia a se assemelhar à morte".

Comentário do psicanalista Jurandir Freire:
A riqueza do aforismo está no deslizamento de sentido da palavra felicidade. Dizendo que a fidelidade à morte é inevitável, o autor sugere que "infidelidade" é o mesmo que criatividade da vida. Insinuando que a monogamia tem parentesco com a fidelidade cadavérica, faz desta regra convencional dos vínculos conjugais ou amorosos, sinônimo de aliada da morte. O jogo de palavras é sutil. Fidelidade ou infidelidade à morte, ele encontra uma maneira de criticar moralmente a monogamia em nome do valor maior da vida. Resta saber se, psicanaliticamente, de fato, somos tão inclinados a viver infielmente quanto somos a morrer fielmente. Tenho minhas dúvidas. Desejar a vida ou começar de novo é sempre um esforço a mais pedido ao espírito; desejar a morte é mais cômodo e fácil do que podemos imaginar. Portanto, penso que a contrapartida da fidelidade involuntária à morte não é a fidelidade involuntária à vida, mas a decisão voluntária, meritória e, por vezes, heróica de desejar a vida, malgrado o apelo da morte. Quanto à monogamia, deixemos que monogâmicos e antimonogâmicos continuem gastando suas vidas em "colherinhas de café", como disse Eliot.

"Na melhor das hipóteses, a monogamia pode ser o desejo de encontrar alguém com quem morrer; na pior, é uma cura para os terrores de estar vivo. Um e outro objetivo se confundem facilmente".

Comentário do psicanalista Luiz Tenório Oliveira Lima:
Adam acertou no alvo: Adão e Eva (o casal original) representam "o desejo de encontrar com quem morrer" e "uma cura para o terrores de estar vivo". Isto se refere ao que pode ser um casal, não necessariamente à monogamia. Esta pode ser pensada como utilização pelo grupo social da possessividade ou do desejo infantil de exclusividade. Uso social de sentimentos infantis ou sentimentos infantis construindo o social do grupo?

"Podemos crer que partilhar seja uma virtude -podemos não acreditar em partilhar aquilo que mais valorizamos na vida: nossos parceiros sexuais. Se realmente gostássemos de alguém, o natural não seria dar a esse alguém o que possuímos de melhor, nosso parceiro? Seria um alívio deixarmos de nos embaraçar com isso. Talvez o valor da amizade esteja aí, talvez seja essa a diferença entre amigos e amantes. Os amigos podem partilhar, os amantes não ousam ser virtuosos demais".

Comentário do filósofo Sérgio Cardoso:
Os amigos tudo partilham -segundo a velha lógica da virtude da Amizade. Os amantes querem para si todo o amado -segundo a velha lógica da paixão erótica. Amizade e Erotismo são sentimentos que têm suas próprias leis e cujos desdobramentos na vida real são muitas vezes conflitantes.
Ora, quando o aforismo, afastando-se da tradição, propõe-se a conciliar as possíveis contradições desses afetos, só o consegue à custa de uma ilusão: fazendo deslizar suas referências iniciais -Amizade e Erotismo- para seus sucedâneos "light", o companheirismo e a sexualidade. Para os antigos, os amigos já podiam, sem dificuldade ou escândalo, partilhar seus parceiros sexuais, mas nunca seus amados; pois, enquanto amantes, fustigados pela paixão, eles jamais são "virtuosos".
Hoje, também, não parece grande extravagância compartilhar parceiros; por exemplo, "ficar" com o "caso" de um "amigo". O único problema é o que se tem perdido: raros chegam a provar a vertigem do prazer proporcionado pela paixão amorosa; raríssimos experimentam o gosto generoso e reassegurador da verdadeira amizade. Mas, também é verdade, e desde sempre, que esses grandes sentimentos sempre foram para poucos.

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