São Paulo, sábado, 31 de maio de 1997
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"Reis" faz do improviso a alegoria do Brasil

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Talvez sejam os cenários e figurinos mais assumidamente "kitsch" já produzidos no palco paulistano. Uma cenografia com estrelas recortadas, cartas de baralho, bolas de bingo, até frutas tropicais. No palco dentro do palco, degraus com luzes.
Fábio Namatame, cenógrafo e figurinista, dá assim, antes mesmo do início, um sinal do que é este musical "bingo". A platéia foi adaptada para casa de shows, e o que surge é também show. Melhor seria descrever logo, como no texto: um "café teatro bingo". Mas também não é o bastante.
"Os Reis do Improviso" é uma amontoado de formas, muito bem costurado, à primeira vista irrealizável, pela diretora Noemi Marinho -também de "Almanaque Brasil", uma primeira experiência no gênero (ou na falta de gênero).
Começa como um musical, uma revista musical, de quadros algo desencontrados, nas canções bem-humoradas de Zé Rodrix -de um humor, apesar da origem carioca do compositor, bem paulistano, de trocadilhos e bobagens ("eu faço mais sucesso que papaia/em restaurante natural").
No mínimo de trama existente: os irmãos Gonçalves, "ases das artes cênicas", depois de sucesso pelo mundo, apresentam-se afinal no Brasil; contam a sua história e terminam por improvisar com base nos textos obscuros deixados por "mamãe", uma senhora de muito conhecimento em Brasília.
Qualquer coincidência com "A Dama do Cerrado", do teatro em frente, não é coincidência, pois a peça é uma pilha de referências, idéias, formas -com liberdade e descontrole raros.
O início musical dá chance de rever Eduardo Silva, o magnífico comediante de "A Comédia dos Erros", aqui em alusão aberta a Grande Otelo e ao Cassino da Urca. É Michael Gonçalves Lee. Os demais irmãos são Mário Gonçalves Moreno (Caruso), Manolita Gonçalves y Menendez (Jandira Martini) e Mercedes Gonçalves Herrera (Eliana Rocha).
Este primeiro tempo do jogo (porque o futebol é outra referência) é um musical com texto e quadros definidos -e muito bem representados pelos quatro, com coreografias, facilmente reconhecidas, de Vivien Buckup e com a preparação vocal de Gustavo Kurlat.
Sente-se a ausência de pernas, de coristas e maior sensualidade. Também uma maior atualização, por exemplo, na sátira à influência da cultura latino-americana, hoje tão presente e talvez até mais patética do que meio século atrás.
Mas o humor escrachado, à Adoniran Barbosa, faz esquecer qualquer exigência. Marcos Caruso, em figurino que sublinha a sua magreza e a altura, entra cantando "sou um homem-objeto", e nada mais faz falta. O mesmo Caruso avisa: "Esta não é uma peça convencional. Esta nem é uma peça".
É no segundo tempo que a afirmação se mostra mais correta. Começa a improvisação, em meio a mais de uma centena de figurinos, que vem misturada com nada menos do que vários rodadas de bingo -em sistema não muito diverso do que se via em "Almanaque".
O público recebe cartelas, alguém vence (e leva um "corta-ovo") e de sua cartela sai a primeira frase, o primeiro estímulo. No caso, domingo último: "Uma mulher muito temperamental..." é a protagonista -outra alternativa, entre dezenas, era "um homem de sobrancelhas grossas e encucado".
O palco muda e começa o improviso. Com dezenas de figurinos à mão, os atores vão se vestindo. Eliana Rocha surge primeiro, como a protagonista ainda criança. Caruso entra como um salva-vidas, pernas finas e longas de fora. (Descobre-se depois, ele também, que é um salva-vidas carioca, e ninguém melhor do que Caruso, típico italiano de Brás, Bexiga ou Barra Funda, para fazer a caricatura de um carioca.) Jandira Martini é a mãe da protagonista. Eduardo Silva, um americano.
Na confusão, vão encontrando uma trama, logo atrapalhada por nova rodada de bingo e outra frase: "... se virou como pôde...". Depois: "... para difundir as suas idéias...". Depois: "... mas aquela queda na Bolsa...".
O improviso segue tresloucado, atravessa décadas, sai em peregrinação até Aparecida, depois num navio pelo mundo, com algumas cenas magníficas de criação, outras muito longe disso.
Eduardo Silva troca várias vezes de personagem, até chegar a um transformista hilariante, talvez o melhor momento da apresentação. Os demais acompanham à altura, sobretudo Eliana Rocha, com uma segurança que garante que o longo improviso não se perca.
Não é à toa que "Os Reis do Improviso" reuniu companhia tão grande de artistas experimentados, de Marinho a Rodrix, de Buckup a Flávio Guerra, de Namatame a Maurício Guilherme, até o diretor de televisão Nilton Travesso.
Em cada cena, em cada letra de música ou figurino montado às pressas, em cada achado de improviso, há uma perfeição que deixa ver o trabalho em conjunto, em grupo. E nada melhor do que um improviso assim bem realizado ser uma alegoria do país, como descrevem os autores Martini e Caruso, no programa da peça. Um "jogo de perguntas sem respostas", mas ainda um grande jogo.

Peça: Os Reis do Improviso
Quando: qua. a sáb., às 21h; dom., às 19h
Onde: Teatro Bibi Ferreira (av. Brig. Luís Antônio, 931, tel. 011/605-3129)
Quanto: R$ 15 (qua), R$ 20 (qui), R$ 25 (sex e dom) e R$ 30 (sáb)

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