São Paulo, sábado, 31 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Cheque ou Mate' é veículo para Raul Cortez

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Raul Cortez já abre rápido, elétrico, a apresentação de "Cheque ou Mate". Logo se vê que é um empresário heterodoxo, o que interpreta. Joga os braços enquanto anda, fala sem parar, canta, histericamente cômico; é menos um capitalista típico, o tipo de um empresário, e mais um novo-rico já caído.
É o que o ator está a avisar, desde logo, nas maneiras, na voz distorcida. O que o texto de Ricardo Semler já anunciava, o protagonista acentuou. "Cheque ou Mate", escrita por um empresário, com um empresário como tema, quer ser mais do que chorar as vicissitudes e os conflitos da burguesia.
Alberto é um homem que deu o golpe do baú, levou a empresa da família da mulher e se deu mal. Mente sobre a sua formação, fala um francês equivocado e está vendendo tudo o que tem por US$ 800 mil. As cifras do empresário são pequenas, nada nele faz ver um representante da classe.
É contraditório, mesquinho, apaixonado, inseguro -ou assim Cortez o fez, resultando em bem mais do que um discurso do capital, sobre o capital. É o que garante a inesperada qualidade da peça.
Não é genial, não vai marcar o teatro brasileiro, mas também o esforço de carpintaria de Semler -que, não sem humildade, mergulhou nas salas de teatro para aprender- é pago em cada cena bem construída, em cada sobressalto do público. É o que se convencionou chamar de "well-made play", uma peça bem-feita, com diálogos tensos e escapes de humor, com surpresas, um ou outro personagem de boa definição.
Contudo, como também se convencionou dizer das "well-made plays" de meio século atrás, é como se faltasse grandeza, ambição, arte, para tanta carpintaria. (Uma característica central do gênero inglês, de JB Priestley até Agatha Christie, é o suspense, também a intervenção do inesperado, muito usados em "Cheque ou Mate".)
Mas não era outro o propósito do autor, em sua primeira peça: um texto bem-feito, que entretenha e diga alguma coisa -ainda que venha a ser esquecido não muito depois da apresentação.
No caso, o tema seria o dinheiro, ou sua perda. E o novo-rico tornado novo pobre (ou quase) de Cortez é uma boa expressão disso. O personagem é a peça. "Cheque ou Mate", por sinal, tem muito de um "veículo" para o grande ator.
Em cenas cômicas, dramáticas e farsescas, Cortez vai desfiando a sua incomum capacidade de fazer funcionar cada palavra que diz, cada situação armada.
Na passagem que é certamente a mais difícil para a interpretação, aquela em que Alberto é levado a rezar a Deus sem saber como, o ator não faz drama. Embarca na farsa, sem temor, pelo contrário, do ridículo. Ajoelha-se, de cuecas, ao lado da cama da amante, e se perde, até chora, patético.
Como é próprio de um "veículo", são de esperar, no correr da temporada, "cacos" e um maior diálogo com a platéia, o que Raul Cortez já ameaça, nestes primeiros dias. Na apresentação, o ator fez sotaques (português, caipira), contou piadas, dançou tango; um "entertainer", ainda que, neste início, preso ao texto.
Elenco de apoio
Não têm a mesma chance os demais atores, que constituem quase um elenco de apoio. Não por falta de qualidade, em especial nos casos de Leonardo Medeiros e Lígia Cortez.
O primeiro vem de passagens memoráveis em "Ricardo 2º", "Ham-let", "A Bilha Quebrada". No papel do filho de Alberto, um jovem rancoroso do pai e ortodoxo em seu esquerdismo, não encontra o mesmo campo livre para a interpretação. Está refreado, encerrado no papel.
Algo semelhante pode ser dito de Lígia Cortez, a filha do empresário, em papel ainda menos desenvolvido; supostamente "racional", mas nem isso muito claro. A sensual atriz das "Notícias Silenciosas" de Hamilton Vaz Pereira, dos Nelson Rodrigues e de Antunes Filho volta com um personagem que não consente o esperado diálogo com o pai, Cortez.
Em grande parte seu diálogo é com a mulher de Alberto, interpretada por Myriam Pérsia, que retoma o teatro ainda muito tímida, e com o que é talvez o papel mais óbvio da peça.
Todos, em realidade, enfrentam a concentração de "Cheque ou Mate" no protagonista. Quem não tem problema com isso é Malu Bailo, a amante. Está ali para mostrar as pernas e nádegas, o que faz muito bem, no que mais aproxima "Cheque ou Mate" de um teatro de variedades.
(NS)

Peça: Cheque ou Mate
Quando: qui. a sáb, às 21h; dom., às 19h Onde: Sala São Luiz (av. Juscelino Kubitschek, 1.830, tel. 011/827-4111)
Quanto: R$ 25

Texto Anterior: "Reis" faz do improviso a alegoria do Brasil
Próximo Texto: Autora Caryl Churchill destrói a sociedade inglesa em 'Cloud Nine'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.