São Paulo, sábado, 31 de maio de 1997
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O maldito Nelson Rodrigues vira querido

DANIELA ROCHA
DA REPORTAGEM LOCAL

O maldito de outras épocas virou bem-amado de diretores de hoje.
Pelo menos três peças rodrigueanas estão em cartaz na cidade: "Dorotéia", dirigida pelo trio Hugo Rodas, 57, Adriano Guimarães, 30, e Fernando Guimarães, 36, "Álbum de Família", dirigida por Cibele Forjaz, 31, e "Viúva Porém Honesta", por Marco Antonio Brás, 32.
Desses, apenas Brás -diretor que é categórico em dizer que pretende montar toda a obra de Nelson Rodrigues- não pôde comparecer a uma conversa promovida pela Folha para descobrir as razões que levam diretores a montar cada vez mais Nelson Rodrigues. Leia a seguir trechos da conversa.
*
Folha - O que levou vocês a montarem Nelson Rodrigues?
Hugo Rodas - O primeiro contato que tive com um texto dele, uma montagem de "Vestido de Noiva", decidiu minha vida. Comecei a fazer teatro imediatamente.
Fernando Guimarães - Resolvi procurar algum autor nacional que tivesse o impacto de um Shakespeare. Comecei a pesquisar e quanto mais lia mais me apaixonava por textos de Nelson Rodrigues.
Cibele Forjaz - Ele tem personagens e histórias que são ao mesmo tempo tão terríveis e tão humanos, tão próximos de todos nós, só que levados ao paroxismo das paixões.
Folha - Por qual razão vocês três montaram "Dorotéia"?
Adriano Guimarães - "Dorotéia" é uma farsa em que Nelson joga pedra em tudo: na família, nas instituições, na igreja. Isso é muito atual.
Hugo - Joga pedra em você, porque você vê sua miséria, sua ruindade, sua mediocridade...
Folha - A montagem de "Dorotéia" é mais contida, enquanto a de "Álbum de Família" escancara as crises?
Hugo - O que escancara é o texto. Adriano - A grande violência de "Dorotéia" está no que ele fala.
Hugo - É um texto que fere sua estrutura amorosa, sua dignidade. É nossa intenção que o texto fique na cabeça do espectador pelo poder da palavra.
Hugo - Quanto mais popular o público, melhor a compreensão do texto de Nelson Rodrigues.
Cibele - Tem uma coisa engraçada sobre isso. Fomos para Londrina e o jornal local fez uma reportagem meio intelectual sobre "Álbum de Família". Aqui em São Paulo, o "Notícias Populares" fez uma matéria maravilhosa, falando do corno que existe no enredo. Como Nelson foi um jornalista de crime, isso é arraigado na obra dele. Ele era louco por crimes passionais. O que mais se aproxima dos crimes das pessoas comuns é o crime passional. É o crime que pode fazer de qualquer um de nós um assassino, um suicida. Nelson funciona como teatro popular, agrada a todos por causa das suas histórias.
Folha - Você concorda sobre a questão de "Álbum de Família" ser uma montagem exacerbada?
Cibele - Acho que isso é fundamental quando se vai montar Nelson. Nelson Rodrigues tem alguma coisa de Shakespeare, é um Shakespeare brasileiro. As tramas são próximas, as personagens têm uma crueldade muito próxima. Então todo meu trabalho foi de tentar tornar o texto vivo. Só assim a peça vira uma bomba capaz de explodir consciências.
Escolhi "Álbum de Família", porque acho que é uma peça fundadora de um novo teatro, até para Nelson Rodrigues. A peça toca em um tabu maior da sociedade, que é a família, as relações entre filhos e pais, que são geradoras de todas as relações. É uma peça seminal.
Fernando - Uma coisa que é unânime aqui é que todos nós somos apaixonados pela qualidade textual de Nelson Rodrigues.
Folha - Nelson Rodrigues em algum momento aparece a vocês como a personalidade reacionária que escrevia peças moralistas?
Hugo - A pessoa de Nelson Rodrigues não me afasta das obras dele. Pelo contrário. Eu me identifico com a forma dele de ver o mundo. Sempre sou pornográfico. Sempre tem um pecado relacionado a tudo o que vejo.
Fernando - Vamos amadurecendo e percebemos o quanto Nelson é real. É assustador. Nós somos reacionários, moralistas.
Adriano - Mas ele foi uma personalidade ambígua, também. Dizia que amor é um só na vida, enquanto sexo é uma coisa para animais. A única paixão que ele teve foi a paixão honesta pela professora, aos 6 anos. Ele tinha amantes e era uma vítima dos instintos.
Fernando - Ele era a síntese de sua própria obra.
Cibele - É muito difícil julgar uma pessoa que é um mito. Mas, lendo a prosa dele, vi que Nelson tem dificuldade de ver apenas uma verdade no mundo. Acho que a tendência dele é de polemizar. Ele destrói o que era de direita ou esquerda. As peças dele são revolucionárias. Ele é um observador cáustico da realidade.
Fernando - Cáustico com ele mesmo.
Hugo - Será que ele no fundo não expõe a sociedade para que ela seja corrigida?
Cibele - Talvez. Poderíamos falar sobre o Nelson e nunca chegar ao que ele achava, ou a um consenso. Temos a obra dele e as nossas paixões. Tenho certeza de que as apresentações de "Álbum de Família" estão lotando só porque é Nelson Rodrigues. Eu não sou conhecida, os atores também não. As pessoas estão indo ver Nelson Rodrigues porque elas são loucas por Nelson Rodrigues.

Peça: Álbum de Família
Quando: hoje e amanhã, às 20h
Onde: Oficina Cultural Oswald de Andrade (r. Três Rios, 363, tel. 011/221-5558) Quanto: grátis. Pegar senha com antecedência, a partir das 17h

Peça: Dorotéia
Onde: teatro João Caetano (r. Borges Lagoa, 650, tel. 011/573-3774)
Quando: sex e sáb, às 21h, dom, às 19h. Até 22 de junho
Quanto: R$ 10

Peça: Viúva Porém Honesta
Onde: teatro Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, tel. 011/256-2322)
Quando: qua a sáb, às 21h, dom, às 19h. Até 29 de junho
Quanto: R$ 15

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