São Paulo, sábado, 31 de maio de 1997
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Consagração do arbítrio

WÁLTER F. MAIEROVITCH

A moderna Justiça penal não despreza a participação popular nos julgamentos. Recomenda, no entanto, estruturação dos órgãos judiciários, de forma a atingir, por meio do devido processo, a finalidade da função jurisdicional, que é não deixar impunes os crimes e não punir os inocentes.
No caminho evolutivo, como se nota pelo sucedido no continente europeu, o moderno conceito de justiça abandonou o júri. Afastou qualquer possibilidade de adoção de tribunais compostos apenas por leigos.
Com a consolidação dos Estados democráticos e a sedimentação das liberdades públicas, eliminou-se o júri popular, ou melhor, a admissão de riscos de condenações ou absolvições imotivadas e aleatórias.
A participação popular passou, então, a ter importância em outro contexto. E vários países criaram tribunais mistos, ou seja, estruturaram-se colegiados compostos por julgadores leigos e especializados. Os últimos, membros da magistratura profissional e afastada da influência do Executivo.
Na Itália, até os tribunais de segundo grau de jurisdição, "corte di assise di appello", têm composição mista. Na Alemanha democrática de Weimar, eliminou-se o júri, tomando seu lugar o escabinado, ou seja, o tribunal misto.
Assim, o tribunal do júri, que teve origem próxima na Magna Carta de 1215, tornou-se arcaico, superado. Convém recordar que apareceu como forma de reconhecimento dos direitos do homem contra as chamadas justiças régias, compostas por juízes corruptos e submissos aos monarcas. Na França, introduzido pela Revolução de 1789, foi logo posto de lado. Constatou-se que os leigos também ficavam sujeitos às influências dos poderosos.
Nosso tribunal do júri, que segue o modelo inglês, manteve-se na atual Constituição. É competente para o julgamento dos crimes intencionalmente cometidos contra a vida, tentados ou consumados. Criado por lei em 18 de junho de 1822, adquiriu competência apenas para o julgamento dos delitos resultantes do abuso da liberdade de imprensa. Nos anos de 1934 e 1953, desdobrou-se e passou a chamar-se Tribunal de Imprensa, que por não atender ao ideal de justiça deixou de existir.
Para ter idéia de como a justiça é ministrada, sete jurados, sem apresentar as razões geradoras do convencimento, podem, secretamente, condenar e absolver réus acusados de crimes dolosos contra a vida.
Em outras palavras, o imputado e a sociedade ficam sem saber dos motivos inspiradores dos vereditos, quer sejam absolutórios, quer condenatórios. Os jurados leigos podem, também, desclassificar os crimes, sempre sem dar satisfações. Trata-se, evidentemente, da consagração do arbítrio, colocando o tribunal do júri em oposição ao regime democrático.
A propósito, recentemente, durante sessão de julgamento de uma das câmaras criminais do Tribunal de Justiça, respeitado advogado, com sinceridade induvidosa, garantia que a influência do jornalista Cândido Gil Gomes sobre os jurados tinha ensejado a condenação do seu cliente.
Na mesma semana e em face de crime passional consumado no interior de São Paulo, combativo promotor desejava a anulação de julgamento do tribunal do júri. Os jurados tinham considerado, em veredito dado como afrontoso ao direito natural à vida, legítimo o marido matar a esposa adúltera.
Claro que os casos revelam inconformismos decorrentes da presença de jurados influenciáveis e despreparados.
Efetivamente, não é ideal o nosso sistema. Consagra, por influência da força reacionária e talvez do fetichismo, o júri popular soberano. E o sistema acaba ficando contrastado quando entrega aos juízes especializados competência para julgamentos de crimes outros, inclusive os de imprensa, obrigando-os, em total respeito à pessoa e à sociedade, a expor, minuciosa e publicamente, as razões do seu convencimento.
Convencimento, vale registrar, à luz da prova e do direito vigente, tudo após respeitosa análise das teses debatidas por acusador e defensor técnico.
Depois de frisar que é o regime democrático, e não o júri, que tutela a liberdade dos cidadãos, saudoso processualista, José Frederico Marques, em face da abolição do júri no México, recordou frase que ficou famosa, pois para cá também valia: "Era un espectáculo, pero no hacía justicia".

Wálter Fanganiello Maierovitch, 50, juiz criminal no Tribunal de Justiça de São Paulo, é professor de direito processual penal da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie e membro da Associação dos Juízes para a Democracia.

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