São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997
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O chiclete da abertura

MIGUEL JORGE

Pressões da globalização provocam hoje, no Brasil, fatos positivos que governo e sociedade precisam avaliar melhor para que o país siga em frente para competir. No meio desse processo, mudam-se sistemas produtivos, tecnológicos e de gestão industrial, a produção de bens satisfaz e abastece a maioria dos consumidores, e a moeda continua estável.
Um excesso de otimismo poderia levar a imaginar que já chegamos ao novo milênio. Embora a virada possa até ter ocorrido sem percebermos, continuamos esperando o futuro em muitas outras áreas.
Há um esforço para reorganizar o Estado brasileiro, para que este possa atender às necessidades básicas de educação, saúde, transporte etc. Ninguém duvida das tentativas de erradicar esses fatores, altamente comprometedores para a democracia e a cidadania.
Privatizam-se estatais, empresas privadas modernizam-se, reduzem-se os custos, importam-se máquinas. O país parece correr contra o tempo. E corre mesmo.
Politicamente, os episódios da venda da Vale, a invasão do gabinete do ministro do Planejamento e a chamada de "líderes" de sem-terra para invasão até de supermercados mostram que nunca foi tão fácil protestar e falar mal do governo.
(Aliás, é preciso, aqui, dizer que, mais que facilidade para protestar, certos grupos já ultrapassaram de há muito qualquer ação aceitável numa democracia -a partir de agora, deve-se considerar que, por trás de seus atos, pode estar a pretensão de desestabilizar o regime).
Manifestantes já fizeram passeatas e ergueram barricadas contra a venda da Vale, já invadiram prédios públicos pelo país afora, ocuparam o gabinete de um ministro e até tentaram expor a autoridade presidencial ao ridículo quando se quis "lavar" a rampa do Palácio do Planalto, montando verdadeiro circo na frente de um prédio que, na verdade, simboliza a autoridade.
Pode-se dizer que isso ultrapassa mesmo o permitido nas democracias mais liberais do mundo.
Mas, apesar dessas instituições tão sólidas a ponto de permitirem esses excessos, da economia estável e da estabilização econômica, que todos querem, alguns setores insistem em jogar amarelinha, um passo à frente e dois para trás.
Estranha-se muito, por exemplo, a postura de quem defende a abertura desregrada do mercado interno, num país em que chiclete -vejam bem, chiclete!- tem alíquota quase zero de importação, enquanto um carro produzido no Brasil paga 40% de impostos.
Até quando vamos ruminar chicletes dessa "abertura", importar US$ 33 milhões em bombons de chocolate e US$ 20 milhões em tônicos capilares (dados de 1996), enquanto se nega o crescimento de setores que podem se tornar mais dinâmicos e competitivos?
Isso posto e dito, é preciso lembrar que qualquer país, para ser realmente respeitado interna e externamente, depende da força de seu mercado. No caso do Brasil, as reformas para fortalecê-lo já demoraram demais.
No período 1994/96, a produção nacional de bens de consumo duráveis aumentou mais de 40%, sobretudo em automóveis, eletroeletrônicos e alimentos. Destacam-se também as vendas de produtos de higiene e limpeza. Mas só em 1996 as importações de bens não-duráveis -incluído tudo quanto é tipo de bobagens, entre elas muitos e muitos milhões de dólares de chicletes- custaram ao país US$ 5,7 bilhões.
Nesse contexto de crescimento, e no meio de muita confusão, o Brasil tornou-se em 1996 o oitavo maior produtor mundial de veículos, passando a Inglaterra e a Itália.
Portanto, é preciso resposta à pergunta: é melhor para o país ter um mercado interno forte, com mais consumo, renda, emprego, riqueza etc, ou ter um mercado interno abastecido por concorrentes estrangeiros, a partir de fábricas em outros países?
Essa pergunta leva a um axioma que, certamente, esteve presente entre os representantes do governo brasileiro na reunião da Área de Livre Comércio das Américas, em Belo Horizonte: não há país livre sem desenvolvimento, desenvolvimento sem economia forte, economia forte sem mercado interno, mercado interno sem empregos.
Resumindo, para onde vamos e queremos ir? Segundo projeções do setor automobilístico, a produção nacional de carros deverá atingir praticamente 2 milhões de unidades neste ano e pode passar de 2,5 milhões até 2000, levando o país a superar Canadá, Espanha e França.
Pode não ser fácil para o Brasil ajustar-se à nova realidade mundial, na qual mudanças tecnológicas, fluxos demográficos, disputa por preços, globalização e multipolaridade causam profunda perplexidade. Menos fácil ainda será suportar as pressões que virão de todos os lados -agora, fica fácil entender por que os Estados Unidos pressionam o Brasil e o Mercosul, bloco que deve produzir quase 2,5 milhões de veículos ainda neste ano.
Recentemente, o economista Lester Thurow, do Massachusetts Institute of Technology, afirmou que mesmo os principais atores mundiais -EUA, Japão, União Européia- não conseguem agir de modo racional, embora saibam o que devem fazer.
Segundo Thurow, é preciso agir rápido para garantir o crescimento e, sobretudo, a distribuição de renda capaz de assegurar o fluxo de capitais e produtos, reduzindo os problemas intrínsecos do capitalismo, como as desigualdades sociais.
Para ele, que toma apenas os EUA como referência, o vulcão inflacionário dos anos 70 e 80 está totalmente extinto, mas isso não significa que demandas reprimidas não levem a terremotos, maremotos e novos vulcões -um excelente aviso, que deve servir para meditação de todos nós.

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