São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Capitu

ROBERTO SCHWARZ

A gama das relações de dependência paternalista no romance ("Dom Casmurro") é variada e escolhida. (...) No próprio campo dos dependentes, o oposto de José Dias é Capitu. A diferença, ligada ao mandamento moderno de autonomia da pessoa e objetividade do juízo, ou, noutras palavras, ao choque entre a norma paternalista e a norma burguesa, tem significado moral saliente. Sem prejuízo das constantes artimanhas, o agregado não se concebe propriamente como indivíduo, à parte da família a que serve, com a qual se confunde em imaginação e cuja importância lhe empresta o sentimento da própria valia. A sujeição ao marido de dona Glória, depois à viúva e finalmente ao filho não é uma contingência externa, mas o molde do seu espírito, cujas manifestações não se desprendem nunca da necessidade imediata de agradar e emprestar lustre.
Capitu, pelo contrário, satisfaz os quesitos da individuação. A menina sabe a diferença entre compensações imaginárias e realidade, e não tem apreço pelas primeiras. Em país tão sentimental, ainda mais em se tratando de mocinhas, deve-se assinalar o incomum dessa iniciativa machadiana de estudar a beleza, a aventura e a tensão próprias ao uso da razão. Assim, quando a santa mãe de Bentinho resolve cumprir uma promessa e mandar o filho para o seminário, pondo em risco os planos conjugais da vizinha pobre, esta explode num raro espetáculo de independência de espírito e inteligência. É Bento quem primeiro lhe traz as novas, que a deixam lívida, os olhos vagos, olhando para dentro, "uma figura de pau", o tempo de se dar conta da situação; depois ela rompe no inesperado "- Beata! carola! papa-missas!". Capitu não só tem desígnios próprios, os quais consulta, como tem opinião formada e crítica a respeito de seus protetores, e até da religião deles. Em seguida ela reflete, aperta os olhos, quer saber circunstâncias, respostas, gestos, palavras, o som destas, presta atenção nas lágrimas de dona Glória, "não acaba de entendê-las" (1). "Era minuciosa e atenta; a narração e o diálogo, tudo parecia remoer consigo. Também se pode dizer que conferia, rotulava e pregava na memória a minha exposição" (2). Notícia exata e verificação interior, uma certa recapitulação crítica da situação, vão juntas, indicando o nexo entre liberdade de espírito e objetividade, esta última um verdadeiro esforço metodizado de pensamento. A clareza na decisão supõe distância em relação ao sistema de sujeições, obrigações e fusões imaginárias do paternalismo.
O brilho de Capitu decorre também da comparação com os demais dependentes. Já vimos que José Dias compensa a precariedade da situação de agregado com superlativos e futricas. Também prima Justina, uma parenta pobre, equilibra a auto-estima falando mal de ausentes e participando com a curiosidade e os olhos do amor nascente do filho da casa, outro modo de se consolar de um destino mesquinho. O confronto mais interessante se faz com o próprio Bento, que enquanto não casa deve ser incluído no campo dos sujeitados a dona Glória. Quando tenta dizer à mãe que não pode ser padre como ela desejava, porque quer casar com Capitu, algo nele fraqueja e ele sai com o incrível "eu só gosto de mamãe", o contrário do que tencionava (3). Em face da autoridade o seu propósito se desmancha. Outra saída -naturalmente em sonho- seria pedir ao Imperador que intercedesse junto à mãe, que então cederia à autoridade por sua vez (4). Em ambas as linhas não podia ser mais completa a superioridade de Capitu: ela não foge da realidade para a imaginação, e é forte o bastante para não se desagregar diante da vontade superior.
Isso posto, Capitu não é Capitu só porque pensa com a própria cabeça. Embora emancipada interiormente da sujeição paternalista, exteriormente ela tem de se haver com essa mesma sujeição, que forma o seu meio. O encanto da personagem se deve à naturalidade com que se move no ambiente que superou, cujos meandros e mecanismos a menina conhece com discernimento de estadista. É como se a intimidade entre a inteligência e o contexto retrógrado comportasse um fim feliz, uma brecha risonha por onde se solucionassem a injustiça de classe e a paralisia tradicionalista, algo como a versão local da "carreira aberta ao talento". A propósito do caráter da amiga, o Casmurro observa que não lhe faltavam idéias atrevidas; "mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponhe uma concepção grande executada por meios pequenos. Assim, para não sair do desejo vago e hipotético de me mandar para a Europa (uma saída lembrada pela moça), Capitu, se pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no paquete e fugir; estenderia uma fila de canoas daqui até lá, por onde eu, parecendo ir à fortaleza da Laje em ponte movediça, iria realmente até Bordéus, deixando minha mãe na praia, à espera" (5). O trecho pode e deve ser lido em várias chaves, pois tanto expressa a fascinação de Bento pela feminilidade de Capitu, como serve no processo movido pelo marido contra a mulher, lembrando que ela desde cedo fora ambiciosa, calculista, oblíqua e inimiga da futura sogra. Há outra leitura ainda, atenta ao conteúdo social das relações, que oferece a vantagem de articular a conduta de Capitu à das demais figuras, de modo a lhes tornar visível o sistema. Com efeito, a desproporção entre fins e meios, central no retrato, reflete os constrangimentos práticos da moça esclarecida nas circunstâncias locais. Com muxoxo oligárquico, as "idéias atrevidas" designam eventuais resultados da independência de espírito da personagem, projetos individuais que escapam ao limite da conformidade respeitosa. Já o recurso aos "saltinhos", por oposição à presumível franqueza de um pulo grande (que seria masculino, e não feminino? que não seria atrevido?), registra a necessidade em que se encontram os dependentes de obter o favor de seu patrono a cada passo, sem o que caem no vazio. Faz parte da lógica do paternalismo que os possíveis objetivos não se assumam enquanto tais e a título individual, mas, filialmente, como conveniências do protetor, o que não só os viabiliza, como legitima. Daí as canoas e a fortaleza da Laje, em lugar do paquete e de Bordéus, já que fins familiares são mais fáceis de impingir. As maneiras "hábeis" e "sinuosas" de Capitu representam a política de decoro, ou, segundo o ponto de vista, a hipocrisia requerida por esse arranjo. Por outro lado é característica do Casmurro e de sua ideologia de classe apresentar como deficiência moral, como falta de franqueza, a política de olhos baixos imposta pela sua própria autoridade, sem prejuízo de considerar "atrevimento" a conduta contrária. Como parte de sua confusão, ou de sua complexidade, note-se ainda como um tipo de conduta com fundamento na estrutura mesma da sociedade brasileira lhe aparece ora como falta de caráter de sua mulher, ora como elemento de interesse erótico, ora como característica geral e desabonadora da psicologia feminina. Seja como for, estará claro o fundo comum entre as manobras de Capitu, o riso sem vontade de José Dias, os pânicos de Bentinho diante da mãe e o susto de prima Justina quando lhe pedem a opinião. O significado destas variações sobre uma situação de dependência básica fica incompleto, contudo, enquanto não passamos ao outro pólo, que as determina, o pólo da autoridade dos proprietários.

Notas:
1. "Dom Casmurro", cap. 18.
2. "Dom Casmurro", cap. 30.
3. "Dom Casmurro", cap. 41.
4. "Dom Casmurro", cap. 29.
5. "Dom Casmurro", cap. 18.

Texto Anterior: PERSONAGENS DA ENTREVISTA
Próximo Texto: Outra Capitu
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.