São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997
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ROBERTO SCHWARZ

As páginas iniciais do diário, onde não faltam a privação e o trabalho, têm alguma coisa de utopia. Este paradoxo pode nos servir de ponto de partida. Segundo explica Helena, quinta-feira é o dia bom da semana: a família levanta cedo, sob as ordens da mãe, arruma a casa e vai ao campo trabalhar, no que é "o melhor lugar de Diamantina", aliás "sempre deserto". Sem prejuízo da rotina, os dias e os lugares de que se compõe a vida não são de modo nenhum indistintos, e os melhores, ao contrário de óbvios, podem ser os menos cotados. Os meninos levam a bacia de roupa na cabeça, e as panelas e a comida no carrinho. Depois irão catar lenha, pegar passarinhos com visgo e pescar. As meninas lavam roupa embaixo da ponte, junto com a mãe, que cuida também do almoço. Na segunda parte do dia tomam banho e lavam o cabelo no rio, enquanto a mãe vigia se não vem ninguém. Depois estendem a roupa para secar, e todos correm o campo atrás de frutas, ninhos de passarinho, casulos de borboleta e "pedrinhas redondas para o jogo". Na volta, por cima da roupa dobrada e das panelas, os meninos trazem a lenha e o mais que apanharam, que vendem na cidade no mesmo dia (1).
Como vemos, um conjunto alegre de atividades simples, necessárias e inocentes, na fronteira do idílico. Além de ser mínima, a diferenciação e divisão do trabalho aglutina as pessoas mais do que as separa, quase sem as especializar, sem nada de irreversível e exigindo pouca subordinação. Por outro lado, é claro que o processo de trabalho não define tudo, ainda que esteja em primeiro plano. Olhando melhor, notaremos já aqui os indícios da organização social, cujo espírito é diferente. Emídio, um dos meninos, é um crioulo, agregado à chácara da avó. Quem carrega a bacia de roupa em cima da cabeça é ele, ao passo que os irmãos de Helena levam as panelas em carrinho, assim como é ele quem procura a lenha, enquanto os outros caçam e pescam. Umas poucas cenas mais, e terão surgido os contornos nada igualitários da grande família patriarcal, com proprietários ricos e influentes no centro, e parentes, dependentes, afilhados, ex-escravos e desvalidos ciscando à sua volta.
Para levar em conta os dois aspectos, digamos que o trabalho, tal como o vemos aqui, atenua as cruezas inscritas na organização social. Ou ainda, que a diferenciação brasileira típica, engendrada pelos rigores da exploração colonial, no caso está voltada para as atividades muito mais simples da coleta, que a tornam supérflua e a fazem regredir (ou progredir, conforme a preferência) no sentido da cooperação de todos (2). O confinamento feminino e a estigmatização do esforço físico por exemplo -características do patriarcalismo escravista- ficam desativados. Neste mesmo sentido, observe-se que na volta os irmãos de Helena carregam lenha por sua vez, como aliás não se furtam a carregar pacotes de toda sorte ao longo do livro, razão pela qual os parentes "idiotas", que se acreditam melhores, gostam de aproveitar deles como "negrinhos" (2). Por seu lado, também a menina forceja para escapar à classificação, a ponto de a mãe achar até bom um machucado no joelho dela, para ela "não querer mais virar menino homem" (3).
O materialismo nas reações de Helena impressiona até hoje, pela vivacidade e surpresa do rumo. A sua feição não se entende bem sem o pano de fundo da civilização escravista. Nalguns momentos, nem sempre, a menina recusa a discriminação pela cor da pele: "Eu não diferenço, gosto de todos" (4). Mais que a injustiça feita aos pretos, entretanto, o que ela não aguenta são os bloqueios, as limitações que a escravidão recém-abolida impunha à própria gente livre, em particular no capítulo do desmerecimento do trabalho e do esforço braçal. Veremos que este ponto de vista da "inglesinha" pode expressar alguma coisa da decadência econômica de Minas na época. Está ligado também à metade inglesa e protestante da família, que acha inaceitável a desqualificação do trabalho, embora não a dos negros. E deve-se muito ao temperamento agitado da própria garota, que anseia por dispêndio físico e trabalho em comum quase como se fossem remédios.
Sejam quais forem os motivos, o fato é que Helena desenvolve uma aversão muito sua ao enjoamento -termo que designa a conformidade paralisante com as proibições sociais correntes. Seu inconformismo vai das irreverências engraçadas, às vezes bicudas, até os apetites desconcertantes, cujo desafio continua intacto cem anos depois. Por exemplo, a impaciência com a vida chocha abre os olhos da menina para os fingimentos da devoção, mesmo de pessoas credoras do incenso geral. A mesma impaciência lhe anima o ímpeto de pôr a mão na massa, a simpatia pelo trabalho forte, pela faxina em regra. Também o trato humorístico e em pé de intimidade com as coisas nojentas participa da recusa de fronteiras intransponíveis, que tem outra variante na preferência pelo ambiente franco da cozinha e das festas dos negros.
Mas onde o seu ânimo disposto passa do outro lado é na inveja que os destituídos às vezes lhe despertam. É sempre possível que a menina esteja fazendo gênero e sustentando uma tese do contra, ou tratando de ser edificante e abnegada, ou bucólica. Mas não é a impressão que dá. Aliás, para afastar a hipótese da ostentação de virtude, note-se a sua inveja também enérgica dos confortos e pertences das primas ricas. Assim, afetação ou não, lá está o desejo de viver como a coleguinha paupérrima, num rancho sem nada, na boca do mato, fazendo lição no meio da paisagem, sentada num caixote (5). Ou a vontade de se juntar à fila das carregadoras de uvas, num serviço pesado e divertido, onde "a gente podia tomar um fartão" (6). Ou a surpreendente declaração de que os escravos não causam pena, porque trabalhar o dia inteiro não é uma infelicidade; ficar à toa é que seria um castigo (7). Parece claro que a inveja aqui não se refere à pobreza, à posição inferior, nem muito menos ao trabalho forçado, mas à própria atividade e sociabilidade em curso no interior destas condições pouco prezadas, algo como a sua substância efetiva.
Muito a contracorrente, Helena não faz caso de enquadramentos "exteriores", ideológicos e de força, e se concentra na vida que mal ou bem lhes corre embaixo. Não deixa de ser uma abstração arbitrária -salvo se a própria História estiver operando uma dissociação análoga, como de fato estava: com a Abolição, a sociedade engendrada pelo escravismo colonial separava-se de seu arcabouço institucional de origem e passava a existir e a persistir sob um céu diverso, com consequências ainda difíceis de definir... Voltando a Helena, ao aderir à gravitação da atividade material, considerada na plenitude de seus conteúdos e despida da rotulação corrente, ela indica perspectivas imprevistas, nada convencionais, mormente num país tão desigual. Assim, bastou passar ao largo dos estigmas de classe, complementares da opressão, para que a choça e o trabalho de carregador -como tudo o mais- entrassem para um campo de apreciações e cálculos diferentes, propriamente materialistas. No caso da choça, mais que o desprezo pela miséria passam a contar, positivamente, a diminuição do trabalho doméstico e a proximidade com a natureza; no exemplo das carregadoras, o prazer de fazer força e cometer excessos em comum. Noutras palavras, apartada da dominação que lhe deu origem e polarizou os valores, a diferenciação dos trabalhos e das situações aparece como a diversidade extensiva da experiência de uma sociedade, uma espécie de cooperação ampla e solta, que diz respeito às possibilidades de auto-realização de todos os membros, brecha pela qual a imaginação de Helena entrou com incrível energia. De pronto as segregações clássicas entre atividade braçal e intelectual, utilidade e beleza, trabalho e diversão, limpeza e sujeira etc. se fluidificam, passíveis de arranjos novos, em que se demora a fantasia de Helena, explorando sem alarde as virtualidades vertiginosas e desalienadoras da avaliação materialista. Sem desconhecer a petulância e o afã de originalidade da menina, vale pensar que o viço que até hoje emana de suas observações seja indício de interesses que não estão extintos.

Notas:
1. Helena Morley, "Minha Vida de Menina", págs. 5-6.
2. Helena Morley, op. cit., págs. 66-7.
3. Op. cit., pág. 88.
4. Op. cit., pág. 36.
5. Op. cit., pág. 236.
6. Op. cit., pág. 84.
7. Op. cit., pág. 114.

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