São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997
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Fora do lugar-comum

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Roberto Schwarz conheceu o filósofo Herbert Marcuse, autor de "O Homem Unidimensional", numa situação inusitada. Quando chegou à casa do alemão, perto de Boston, nos EUA, este lhe surpreendeu ao recebê-lo com um álbum de colagens nas mãos, em que apareciam vedetes de pernas abertas e foguetes apontados para o lugar certo.
No trecho a seguir, o crítico fala sobre Antonio Candido, Marcuse e Adorno e retoma a polêmica que girou anos a fio em torno de seu ensaio mais famoso, "As Idéias Fora do Lugar". A tese de que por aqui as idéias dão a impressão de estarem fora de órbita, como diz Schwarz, não é dele; é um lugar-comum do pensamento conservador desde a independência.
*
Folha - A partir de que momento Antonio Candido se tornou a presença decisiva na sua formação?
Schwarz - No terceiro ano da faculdade comecei a enxergar o rumo que as ciências sociais tomavam. Estava ficando claro que um bom sociólogo era alguém que faria pesquisa empírica, de preferência quantitativa, com metodologia norte-americana. Eu senti que não era a minha vocação. Fui, então, chorar as mágoas com o Antonio Candido, que tinha passado para as letras e, naquele momento, estava em Assis. Quando ele resolveu virar professor de literatura, primeiro passou dois anos em Assis, ensinando literatura brasileira, para ter tempo de se preparar bem e depois vir a São Paulo assumir a cadeira de teoria literária.
Folha - Ele se auto-exilou em Assis para se preparar?
Schwarz - É. Foi para lá preparado e voltou preparadíssimo. Então fui até lá perguntar a ele o que achava da minha crise, que, mal comparando, já tinha sido a dele. Ele me estimulou e depois me convidou a ser assistente dele, desde que eu fizesse um mestrado em teoria literária e literatura comparada no estrangeiro. Quando acabei a faculdade, em 60, fui para os Estados Unidos fazer mestrado em Yale. Nesse mesmo ano, houve um congresso de crítica em Assis, no qual o Antonio Candido fez uma comunicação que para mim foi decisiva. Nela, ele anunciava mais ou menos o programa crítico da fase dele posterior à "Formação da Literatura Brasileira". A comunicação foi publicada em "Literatura e Sociedade", com o título "Crítica e Sociologia".
Folha - A "Formação" é de 1959?
Schwarz - Isso. Mas, como eu dizia, no ensaio em questão Antonio Candido procurava dar uma resposta mais sofisticada à questão das análises internas e externas em literatura. Ele dizia que essa oposição é superável e que uma boa análise literária consegue acompanhar aquilo que ele chama de processos de estruturação -processos por meio dos quais elementos da vida social se estruturam e passam a atuar no interior da obra literária, enquanto forma. Isso tem muitas consequências, que ele próprio foi tirando aos poucos.
Folha - Mas voltemos à conferência de Assis...
Schwarz - O Antonio Candido apresentou uma tese quase programática. Era um esforço de superar o antagonismo entre a crítica sociológica e a formalista. Ele tinha formação sólida nos dois campos; seja na crítica de orientação sociológica, seja na sua recusa pelo "New Criticism" e por análises de tipo formalista. Naquela altura, em 61, ele estava tentando dar um balanço na experiência intelectual dele, de que as duas tendências haviam feito parte. Os momentos em que um intelectual considera o que acumulou durante a vida, sobretudo nos seus aspectos contraditórios, e tenta dar um passo a frente, esses obviamente são os bons.
Folha - Voltando ao seu período de formação nos EUA. Se não me engano, o sr. já o descreveu como uma espécie de choque elétrico.
Schwarz - Bom, eu fui para o aeroporto no dia em que Jânio Quadros deixou a Presidência. Ele renunciou enquanto eu estava no ar. Saí do Brasil sem saber. Quando cheguei lá, todos me perguntavam o que tinha acontecido. Eu não tinha a menor idéia. Nos Estados Unidos, passei dois anos em Yale. A impressão das impressões foram as bibliotecas. É uma coisa da qual você nunca mais se recupera. A nostalgia de qualquer intelectual latino-americano só pode ser passar uma temporada naquelas bibliotecas sem ter a preocupação de dar aulas.
Também fiquei muito impressionado com o ritmo de trabalho na pós-graduação. A graduação lá é bastante folgada e eles tratam de tirar o atraso na pós de modo violento. Eu fiz as contas, na época, e tinha que ler 110 páginas por dia para acompanhar os cursos. Era duro e eu senti, na época, como uma brutalização intolerável, que neurotiza qualquer um.
Quando cheguei lá, foi o primeiro ano em que entraram moças nos cursos de pós em Yale. A graduação era só masculina. As meninas eram em número mínimo e o clima era realmente monacal. A contrapartida eram os porres gigantescos nos fins-de-semana, uma coisa triste. Sentia tudo aquilo como um retrocesso grande. Saí do Brasil achando que era um intelectual e estava fazendo "papers" a toque de caixa. Passado o tranco, o fato é que aproveitei muito. Quando voltei e vi que aqui ninguém fazia nada, ou que se fazia pouco, comparativamente, desisti de descansar e continuei a me impor o mesmo ritmo de trabalho. Demorei uns bons anos até desenlouquecer. Depois, a política começou a tomar conta e eu desenlouqueci do lado acadêmico e enlouqueci do outro.
Folha - Em Yale, o que lhe despertou maior interesse?
Schwarz - A coisa mais interessante talvez tenham sido os chamados "American Studies", nos quais se estudava uma mistura de textos de teologia puritana, os primeiros romances, história social dos Estados Unidos, tudo isso integrado ao problema da formação da nacionalidade e da cultura norte-americana. Era uma coisa de muito bom nível e de pouco prestígio intelectual. Este era reservado às disciplinas de assunto europeu, o que dava a medida de como os EUA ainda se sentiam uma cultura até certo ponto secundária. O prestígio máximo era dos estudos clássicos, de grego e latim.
Folha - O sr. destacou o perfil puritano da sociedade norte-americana, mas, nos anos 60, sobretudo nos EUA, as coisas viraram do avesso. Qual a experiência da famigerada liberação comportamental para um estudante latino-americano isolado em Yale?
Schwarz - Quando estava lá, a liberação sexual estava apenas começando. Uma das modas era ir em bando à praia, onde as moças tiravam a blusa e o sutiã. Os seios ao ar livre eram a parte da liberação. Só que os rapazes não podiam olhar. Se olhassem, era uma baixaria, porque a cultura era puritana. O resultado era uma coisa deprimente, tristíssima, uma espécie de naturalismo assexuado. Para quem vinha da América Latina, onde não havia liberação sexual, mas também não havia a negação da sexualidade, era de matar.
Folha - Herbert Marcuse, que pouco depois se tornaria uma espécie de guru acadêmico da contracultura, vivia nos EUA nos anos 60. Como foi seu contato com ele?
Schwarz - É uma história divertida. Um dia achei numa livraria um livro chamado "O Marxismo Soviético", de um sujeito chamado Marcuse, que eu desconhecia. Comecei a ler com o maior desprezo, pensando que era mais um produto da indústria anticomunista. Logo percebi que era muito bom.
Pouco depois, houve um grande acontecimento político em Yale e foi falar lá um sujeito chamado Chester Bowles, que era o embaixador itinerante do presidente Kennedy. Ele foi falar sobre Terceiro Mundo, imperialismo, algo assim. Eu ouvia e torcia o nariz, achando muito ruim. Vi que, a meu lado, havia um casalzinho que também ridicularizava a exposição. Quando acabou a conferência, fomos tomar um café e logo ficamos amigos. No meio da conversa, contei que havia feito uma descoberta, um livro de um tal Marcuse. Caíram na gargalhada. Não entendi nada. Dizia que eles estavam enganados, que era bom mesmo, até que o rapaz me contou que era enteado do Marcuse.
Folha - O sr., então, foi conhecer Marcuse?
Schwarz - Ele ensinava em Brandeis, ao lado de Boston. Fui até lá, com os amigos. Me preparei para a visita, queria perguntar uma porção de coisas. Quando chegamos lá, a única coisa que ele queria mostrar era um álbum de colagens que tinha feito em que se viam vedetes de pernas abertas e foguetes balísticos intercontinentais entrando nelas. Ele estava mesmo empenhado numa espécie de surrealismo antiimperialista, ao qual ele dava o maior valor. Quando, enfim, ele cansou da sessão de colagens, conversamos bastante. Ele me mostrou os manuscritos do "Homem Unidimensional - a Ideologia da Sociedade Industrial", que estava terminando. Ele estava satisfeito e disse: "Dessa vez eu dei o troco". Eu tinha acabado de ler "Eros e Civilização", que é anterior, e notei que tinha muita citação de Marx sem aspas. Perguntei a razão e ele respondeu que escrevera em parte pelo interesse por Freud e em parte pelo desejo de veicular idéias marxistas nos Estados Unidos, o que era impossível se ele citasse o próprio. Era um expediente para colocar em circulação coisas inteligentes e razoáveis que, com as aspas devidas, seriam barradas de saída, antes de serem consideradas.
Folha - Uma maneira de driblar o cerco macartista.
Schwarz - Isso mesmo. Nesse mesmo dia, no meio do almoço, chegou lá o outro filho do Marcuse, que era militante do Partido Democrata. Começaram a falar de política e o filho criticou muito duramente o pai, acusando-o de ficar imerso em teorias remotas, coisas que não têm nada a ver com a realidade, dizendo que aquilo tudo era um escapismo etc. Numa certa altura, o Marcuse, que era um homem grande, calmo, tipo alemão bonachão, perdeu a paciência, bateu na mesa e falou: "Você está muito enganado; eu estou ajudando o marxismo a hibernar. Você ainda vai ver se o que estou fazendo tem relevância ou não tem". De fato, pouco tempo depois "O Homem Unidimensional" fez um barulho considerável.
Folha - E as relações dele com o Adorno?
Schwarz - Quando perguntei, ele respondeu: "Adorno é meu farol". Ele tinha uma admiração sem tamanho pelo Adorno.
Folha - A escolha de Machado de Assis, na volta ao Brasil, está longe de ser ocasional. O sr. sabia aonde ia chegar desde o início?
Schwarz - Comecei pensando em fazer uma análise do humor de Machado de Assis. A questão das mediações era uma obsessão para quem queria fazer crítica de inspiração marxista sem cair em facilidades. Lembro-me de uma frase do Sartre que dizia: "No balanço da sintaxe de um bom autor você pode encontrar o movimento geral da sociedade". Ou seja, havia um arco entre o mais singular ou contingente e o dinamismo geral. A idéia de que fosse possível estabelecer conexões entre coisas tão distantes excitava muito os espíritos dialéticos. Aliás, são coisas que continuam me interessando.
Folha - "As Idéias Fora do Lugar", o ensaio de 72, que depois virou o capítulo de abertura de "Ao Vencedor as Batatas" (1977), é certamente seu texto mais famoso, a ponto de levar alguns, bem ou mal-intencionados, a chamá-lo de "senhor idéias fora do lugar". A despeito do impacto que o artigo provocou, ou por isso mesmo, não faltaram as objeções, algumas rasteiras, outras bem-informadas, mas todas devidamente inflamadas. Não é sempre que um texto tem o poder de dividir um ambiente intelectual inteiro. O sr. esperava isso? Como vê hoje as críticas?
Schwarz - Evidentemente que eu não escrevi meu estudo para botar as idéias no lugar, nem para dizer que elas estão fora do lugar. O tema real de meu trabalho é explicar por que as idéias no Brasil dão a impressão, repito, dão a impressão de estarem fora do lugar. É claro que, em sentido óbvio, as idéias não têm lugar determinado.
Além disso, não fui em que disse que elas estão fora do lugar. Essa artificialidade das idéias modernas no país é, na verdade, o lugar-comum mais estabelecido do pensamento conservador brasileiro desde a Independência. É quase uma ladainha. Como é que as pessoas vão defender idéias liberais aqui, quando temos escravos. Essas idéias são importação, não têm fundamento, não me venham com idéias modernas aqui que isso só atrapalha. Nós temos escravos, precisamos dos escravos e liberalismo é uma bobagem, além de ser uma mentira também na Europa, porque, como gostavam de dizer, era melhor ser escravo no Brasil do que operário na Inglaterra. O operário morria de fome, enquanto o escravo tinha sempre seu senhor para protegê-lo.
Isso posto, vou me repetir. A matriz histórica do problema é simples: você tem a colônia assentada sobre o trabalho escravo; com a conquista da independência política, a organização da economia não muda, e o país se inscreve na nova ordem mediante a continuação da ordem escravista. É um dado estrutural: o país tem que incorporar as idéias necessárias à constituição de uma nação moderna sobre uma base de relações de trabalho que é abominável à luz daquelas idéias.
Procurei dar uma explicação histórica para esse mal-estar que a vida ideológica moderna desperta num país que produz e se reproduz sobre a base de relações sociais incompatíveis com esse ideário moderno. Esse meu modo de encarar a questão foi mal-entendido constantemente. A começar pelo fato de terem atribuído a tese a mim.
Folha - De quem partiram as objeções mais incisivas?
Schwarz - As duas objeções mais fortes a meu esqueminha vieram da Maria Sylvia de Carvalho Franco e do Alfredo Bosi. Cada um à sua maneira procurou mostrar que as idéias estrangeiras não estavam fora do lugar porque tinham função na vida brasileira. O argumento é que, quando uma coisa tem função, ela não está fora do lugar, ela está, por assim dizer, autenticada. Só que na minha construção de modo nenhum eu disse que elas não tinham função. Digo que elas podem ter função e dar a impressão de estar fora do lugar. Que o liberalismo tinha função no Brasil é algo evidente, entretanto, é inevitável também que, à luz dele, a escravidão parecesse grotesca e que ele, à luz da escravidão, também parecesse grotesco e, portanto, desse a impressão de estar fora do lugar.
A resposta que eu procurei dar vai no sentido contrário dos críticos da importação de idéias. Em geral as pessoas querem dizer: "Se não importássemos essas novidades estrangeiras, não teríamos vida intelectual artificial, mas autêntica". O que torna as idéias artificiais, como procurei mostrar, não é o fato de serem estrangeiras, mas sim o fato de que os pobres estão excluídos do seu âmbito. O absurdo, hoje, não é a aspiração a nos integrarmos ao Primeiro Mundo, mas sim que o conjunto de vantagens e direitos ligados à essa aspiração seja completamente inacessível a uma parte importante da população, o que faz parecer postiça aquela pretensão. A chave desse caráter danificado da cultura brasileira não é a importação cultural, mas a exclusão social.
Folha - O seu ensaio "Nacional por Subtração", que está no livro "Que Horas São?", é uma resposta às críticas ao texto anterior?
Schwarz - Em parte é uma resposta. O fato é que a boa ou a má sorte que teve esse título se deve ao fato de que toca num ponto melindroso. Suponho que grande parte das pessoas que me objetaram não tinham lido o ensaio, mas o título. É um título que pegou.

Continua à pág. 5-7

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