São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997
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FHC e a chanchada

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O impacto do governo FHC sobre os intelectuais, a crítica ao tropicalismo feita à quente, num ensaio de 1970, a ficção de Paulo Emilio Salles Gomes e a influência de Anatol Rosenfeld sobre sua vida são os temas sobre os quais Roberto Schwarz discorre no trecho abaixo da entrevista.
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Folha - Desde que Fernando Henrique se elegeu presidente, talvez até um pouco antes, a esquerda, sobretudo a acadêmica, se dividiu de forma inédita e vem trocando farpas e insultos constantemente. O "fernandismo" de alguns e o "anticardosismo" de outros saltaram para o primeiro plano, prejudicando, dos dois lados, a análise crítica e, muitas vezes, a própria capacidade de pensar o que está acontecendo. Sendo ao mesmo tempo de esquerda e amigo pessoal do presidente, este, para o sr., não é assunto dos mais fáceis de lidar. Qual o real impacto do governo FHC na intelectualidade?
Schwarz - Não sei se a pergunta é boa. No substantivo, a esquerda está em crise por causa de uma mudança havida no capitalismo mundial, e não por causa do governo FHC. A mudança foi objetiva e deslocou as balizas políticas nacionais com que o reformismo, como aliás a revolução, costumavam contar. Sumariamente, as reformas da esquerda dependiam do fortalecimento do campo popular diante do Estado e do capital assentado no país. Com a atual preponderância e mobilidade do capital mundializado, que sempre pode preferir outra plagas, o alcance daquele fortalecimento ficou menor e, com ele, a própria esquerda, enquanto não conseguir uma expansão paralela à do capital. Essas coisas é bom lembrar para que não se descarreguem no governo FHC dificuldades que a esquerda, se estivesse lá, encontraria igualmente ou em maior escala.
Acontece que FHC, antes de articular a aliança de centro-direita que o levou à Presidência, foi um dos líderes intelectuais da esquerda. Uma parte desta o acompanhou, outra ficou contra, e uma boa dose de azedume de parte a parte foi inevitável. Mas, do ponto de vista intelectual, é interessante notar a continuidade nas análises de FHC, que, até onde vejo, não mudaram muito de estilo.
Se isso for exato, nós, os adversários de esquerda, poderíamos nos questionar a respeito do nosso próprio arsenal de categorias, próximas das dele, quando não formuladas por ele mesmo. Desenvolvimentismo, primado da economia, análise de classes, visão fria da dinâmica internacional, todos esses méritos do marxismo razoável são compatíveis com a linha do governo atual.
As consequências a tirar dão para todos os gostos. Seria razão para apoiar o governo FHC? Para lhe dar apoio crítico? Seria razão para rechaçar a teoria, para revê-la e examinar os pontos em que ela pode deixar de ser anticapitalista? Ou, ainda, seria razão para fazer oposição sem teoria, diretamente inspirada no intolerável da fratura social?
Folha - Qual a matéria dessa aula?
Schwarz - O horizonte do governo FHC é de atualização capitalista. Apesar do progressismo ostensivo, a ênfase que resulta é intelectualmente conservadora. Ela encontra o foco na diferença que nos separa dos países ricos, o que os transforma em padrão de excelência, aceito de maneira acrítica. Todo leitor de jornal, entretanto, sabe que eles estão em dificuldades, em parte parecidas com as nossas. Aliás, a necessidade de captar investimentos estrangeiros protege de debate a feição socialmente absurda de seu movimento errático, o qual teria justamente de ser criticado. Além disso, nada indica que a atualização seja, de fato, generalizável para a população, e muito menos para o conjunto das nações, que anda esquecido.
É muito possível que a atual falta de brilho de nosso debate intelectual se deva a essa situação nova, aliás antiga: a busca da solução para o país por meio do acatamento da ordem internacional que é a causa do problema. O vigor intelectual do período anterior se deveu justamente à articulação entre crítica da ordem social interna e crítica da ordem internacional, que emprestava vibração e relevância contemporânea aos debates nacionais, que, mal ou bem, tinham algo a ver com a melhora da humanidade e com a compreensão da feição inaceitável tomada pelo progresso.
Folha - Vamos saltar para trás, de FHC para o regime militar. Escrevendo sobre o ambiente cultural brasileiro entre 64 e 69, num ensaio de 1970, depois publicado em "O Pai de Família e Outros Ensaios", o sr. faz uma análise crítica do tropicalismo que passou batida por alguns e foi malvista por outros. Tratava-se, no ensaio, de entender a justaposição tropicalista entre o arcaico e o moderno, justaposição que, segundo o sr., atualizava no plano artístico (e no âmbito da cultura de massas) a interpretação dualista do Brasil, justa mente no momento em que a ciência social no país tentava superar essa construção. O sr. escreve, a certa altura, sobre o engenho tropicalista: "O veículo é moderno e o conteúdo é arcaico, mas o passado é nobre e o presente é comercial; por outro lado, o passado é iníquo e o presente é autêntico etc.".
Schwarz - Esse ensaio lida com a posição em que ficaram os intelectuais com simpatia pelo campo popular depois de 64. O golpe, evidentemente, foi uma grande derrota dos progressistas. Mas não foi um entrave ao progresso econômico, ao contrário do que a esquerda imaginava. Aconteceu ao mesmo tempo uma coisa surpreendente: na área cultural houve um período de grande exuberância da esquerda entre 64 e 68. Como a esquerda elaborava isso? Era uma situação difícil. O tropicalismo foi uma das maneiras mais profundas e ácidas de refletir sobre essa questão.
Meu artigo foi contabilizado como uma crítica ao tropicalismo, quando a intenção era vê-lo como uma formulação forte daquele momento histórico, com todos os problemas que aquele momento punha em cena. Acontece que a problemática em si era muito negativa e o tropicalismo a condensava.
Folha - Pedir para que seus contemporâneos entendessem o que estava em jogo no ensaio era demais para a época.
Schwarz - É. Era um Fla x Flu. Voltando ao tropicalismo, acho que o crítico interessante é o que encontra os problemas e explicita o quanto da problemática contemporânea foi retida e aprofundada numa obra. Mas, quando você fala dos problemas, logo pensam que é ofensa pessoal. Para terminar, em diria que 64, para mim, foi uma aula do que não muda no Brasil. A minha compreensão do Machado de Assis certamente se alimentou muito do grotesco que 64 pôs na rua.
Folha - O sr. escreveu um longo ensaio a respeito de "Três Mulheres de Três PPPês", único trabalho de ficção de Paulo Emilio, publicado no ano de sua morte, em 1977. Ele próprio dizia, em tom irônico, que o sr. estava levando o livro muito a sério, que aquilo era um exercício lúdico, uma espécie de brincadeira. Não poderia haver contraste maior entre essa confissão do autor e as palavras finais do seu texto. Eu cito: "É a melhor prosa brasileira desde Guimarães Rosa quem o diz, e não como tese, mas por força da coerência de seu trabalho artístico". Com quem ficamos, com o crítico ou com o autor?
Schwarz - Eu achava e continuo achando o livro do Paulo Emilio muito especial, e acho também que a crítica não deu o reconhecimento devido. De certo modo, o problema estético do livro é da mesma ordem do que vimos em outros autores. É uma ficção feita com prosa de ensaísta de alto nível, coisa quase inexistente no Brasil. O Paulo Emilio se destaca na ficção nacional por ser um intelectual com uma formação vasta em várias áreas. Os recursos literários dele são de universitário. A prosa é de uma velocidade, um nível de abstração, uma capacidade de circular entre assuntos aparentemente díspares, ou mesmo desconexos, que é extraordinária.
É, portanto, uma prosa de ensaísta de alto nível. E ela se combina com a problemática paulista tradicional, com um sistema de conflitos completamente ultrapassado e grotesco. Isso cria uma comicidade própria e faz com que o alto nível intelectual não sirva para nada. Ele aparece como uma espécie de exibição de brilho inútil. É, nesse sentido, uma dramatização do que já discutimos: a impotência do desejo de modernização.
Folha - O sr. fala em descompasso entre o âmbito acanhado dos personagens e a altura da prosa.
Schwarz - Que é uma característica também do Machado de Assis. A prosa pertence a um universo mental incomparavelmente mais rico do que o das personagens. Isso produz uma sensação de impotência e um humorismo muito particulares. O Paulo Emilio está estruturalmente filiado ao Machado de Assis. Isso vai configurando uma problemática nacional. O livro é impensável sem uma enorme acumulação e uma vida bem realizada do ponto de vista intelectual, que, entretanto, não passam de palha. Uma conclusão dura, vista a qualidade do que ela anula.
Penso que é razoável dizer que no período brasileiro recente, os prosadores mais interessantes talvez tenham sido ensaístas. Particularmente os do grupo do próprio Paulo Emilio reunidos em "Clima". A prosa esteticamente mais satisfatória e adulta dos últimos tempos é a dos ensaístas.
Folha - Anatol Rosenfeld, que hoje anda meio esquecido, foi um dos intelectuais que mais o influenciaram. Qual exatamente o peso dele na sua formação?
Schwarz - Junto com Antonio Candido, o professor a quem eu mais devo é Anatol Rosenfeld. Quando meu pai morreu, eu tinha 15 anos, e o Anatol, que era amigo dele, passou a me orientar um pouco. Nos víamos toda semana. Conversávamos de tudo. Ele havia preparado seu doutorado de filosofia em Berlim, quando o nazismo o obrigou a fugir. A linha dele era especial. Tinha formação acadêmica muito boa, mas preferiu não ir para a universidade. Vivia como intelectual independente. Ele se interessava muito pelo "New Criticism" e, de modo geral, pela análise de texto, coisa que ele combinava com uma espécie de questionamento filosófico do mundo contemporâneo. Tinha simpatias pela esquerda, mas alimentava uma certa birra do marxismo, que considerava dogmático. Fazia análises de texto muito pormenorizadas, sem nenhum preconceito, incorporando à analise tudo o que o objeto propiciasse. Essa liberdade de espírito, que contrariava e ainda contraria a compartimentação acadêmica, impressionava muito e tinha resultados inesperados.

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