São Paulo, domingo, 1 de junho de 1997
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A primeira noite

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Fui gravar uma entrevista com o José Maurício Machline na avenida Niemeyer. Peguei o trânsito em mão dupla. Pouco depois, mudou o regime da mão, que passou a ser única. Não havia sinalização, ninguém me avisou. Quando saí do estacionamento, embiquei o carro em direção ao Leblon. Andei uns cem metros e -maldição!- faróis contrários e irritados me ofuscaram.
Se fossem de desenhos animados, os carros que vinham contra mim se espremeriam, apavorados com o marginal que os afrontava.
Dei meus obscuros dias na face da Terra como findos. Primeiramente, confiei no tal do "air bag"; já me explicaram como e por que ele funciona, mas, honestamente, preferia não vê-lo em atividade.
Ouvi duros palavrões, dirigidos a mim e à minha falecida mãe, e ainda bem que os ouvia; se deixasse de ouvi-los, é porque o iminente acontecera e eu tinha partido para um mundo na certa pior.
Sou ruim de ré. Mestre em andar para trás na vida, quando estou no volante só sei ir para a frente. Daí a dificuldade com que voltei ao estacionamento, em linha espantosamente reta, façanha que nunca ousei nos muitos anos em que, graças a condenável incúria do departamento de trânsito, possuo uma carteira de motorista.
Alucinado, um ônibus monstruoso apareceu à minha frente, senti na cara o bafo imundo de seu radiador. E, como minha mãe já fora suficientemente lembrada, lembrei-me eu próprio dela e de sua devoção a santo Antônio. Lembrei também os balões que o pai fazia para soltar nos dias 13 de junho. Eu o ajudava, segurando compenetradamente a panela com a goma feita de farinha de trigo. A cada balão que subia de nosso quintal, o pai berrava para a noite: "Viva santo Antônio!".
Pensei nisso tudo em segundos. Já li que a oração é um grito da alma. Não cheguei a gritar, nem sei se tenho alma. Quando atingi o estacionamento, olhei o céu e juro que vi um balão daqueles antigos, sereno e formidável, iluminando a primeira noite de um crente.

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