São Paulo, segunda-feira, 2 de junho de 1997
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Nobre morfina

JOSÉ SERRA

Na segunda-feira passada, em São Paulo, demorei uma hora e quinze minutos para deslocar-me do bairro de Pinheiros até o aeroporto de Congonhas. Não chovia, não era véspera de feriado, não havia nenhum acidente, assalto ou passeata de protesto de funcionários públicos. Um dia normal.
Desprevenido, eu não tinha à mão material de leitura. O celular falhava. Só me restou ir propondo ao motorista atalhos inúteis, além de calcular os prejuízos pela perda do vôo para Brasília. Lembrei-me, também inutilmente, das "palavras que consolam" do Vão Gogo, em "O Cruzeiro": muito pior estaria quem percorresse o mesmo caminho todos os dias e de ônibus.
Como bom inferno, o problema do trânsito em São Paulo não se deve à maldição divina ou da natureza. É criação nossa. Reflete a orientação de sucessivas prefeituras de privilegiar avenidas, túneis vistosos e viadutos cuja principal virtude é encurtar a distância entre um congestionamento e outro.
Reflete também, como não, o apreço da população por obras e mais obras, independentemente de sua eficácia a médio e longo prazos. Não se leva em conta que o incentivo ao transporte individual e o descaso com a expansão da infra-estrutura e os serviços de transportes coletivos só fazem piorar as condições do transporte individual!
Ignora-se que anjos exterminadores urbanos como o Minhocão atiçaram o uso do automóvel; isto, por sua vez, veio a exigir novas obras do gênero etc. E que os recursos nele empregados poderiam ter estimulado o bom transporte coletivo, exigindo menos obras custosas no futuro.
Outro capítulo do drama urbano exibe a desordem na ocupação e uso do solo, indutor direto de engarrafamentos de trânsito e fruto tradicional da gestão de prefeitos e vereadores com estatura inferior às suas responsabilidades. Hoje, aliás, corremos o risco de ver essa desordem ser legalizada por um plano diretor da prefeitura que prevê adensamento urbano sem estabelecer parâmetros ligados ao interesse público nem definir um órgão regulador legítimo e independente. Um plano diretor de bons negócios para uns poucos, em detrimento de muitos.
Nesta altura de congestionamentos e opções políticas pelos maiores congestionamentos, só resta um consolo, este sim útil, embora temporário: a volta do rodízio de veículos na região metropolitana de São Paulo. Promovido pelo governo Covas, apesar do corpo mole da prefeitura e destinado a aliviar a poluição no inverno, mostrou-se eficaz também para desafogar o trânsito. Deixou saudades.
Trata-se de uma dose de morfina para aplacar as dores da vida urbana, mas, neste caso, de um anestésico nobre, educativo: não vicia e sugere como tudo poderia ser melhor se tivéssemos prefeituras melhores e soluções coletivas corajosas.

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