São Paulo, quarta-feira, 4 de junho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um perigo: a madame do celular laqueado

ELIO GASPARI

Há um novo (ainda que pequeno) escândalo na praça. Atende pelo nome de "trunking". Esse é o nome que se dá aos serviços de radiotelefonia que interligam, entre outras coisas, frotas de táxis e de caminhões. No tempo em que os bichos falavam, o ronco e os apitos desses rádios eram um suplício para quem os usava. Hoje, o progresso tecnológico permite que suas centrais possam interligar telefones portáteis. Por enquanto, elas estão tecnicamente limitadas. Uma rede celular de telefonia pode atender mais de um milhão de clientes; o "trunking" mal pode passar das centenas de milhares.
O escândalo surgiu com a descoberta de empresas de "trunking" vendendo serviços de telefonia celular. De um lado, suspeita-se que a lei não permite que essas companhias entrem no mercado dos celulares. De outro, as empresas interessadas na compra de concessões da banda B sustentam que essa concorrência é indevida e pode ameaçar os investimentos necessários para a montagem da rede de telefonia privada.
Onde está o escândalo? Há quase 2 milhões de brasileiros querendo comprar celulares e apareceram empresas vendendo-os. O que há de anormal nisso? Se a lei não o permite, é o caso de se perguntar por quê. Se os empresários da banda B querem proteger seus investimentos, que façam promessas a frei Damião. O segredo de um regime de economia aberta é mandar a proteção dos investimentos para a jurisdição da providência divina. Podem existir argumentos razoáveis para impedir que as empresas de "trunking" vendam celulares, mas os que apareceram até agora são economicamente impróprios e tecnicamente retrógrados.
O mercado da microeletrônica de comunicações é inovador, ágil e imprevisível. Exatamente por isso as teles do governo se transformaram em monstros improdutivos cuja privatização já vem tarde. Nada impede que amanhã de manhã uma empresa sueca anuncie um novo tipo de central telefônica, capaz de trabalhar cem vezes mais rápido, cobrando tarifas simbólicas. É sabida a existência de projetos de interligação de satélites e sistemas telefônicos que tornarão irrelevantes as bases de operação das prestadoras de serviços. Um sujeito poderá viver na Nigéria, ligado a uma empresa de telefonia da Tailândia.
O escândalo do "trunking" disfarça um desinteresse na discussão da política pública de telecomunicações. Se há a possibilidade de se jogar mais celulares no mercado (vale repetir, onde há uma fila de quase 2 milhões de pessoas) é preferível comemorar do que reprimir.
Suponha-se que um dia uma senhora venha a descobrir que seu celular adquiriu superpoderes depois que foi involuntariamente borrifado com laquê suíço. O aparelho ficou um pouco pegajoso, mas passou a funcionar com tarifas inglesas e eficiência americana. O que o governo e o mercado vão fazer com a madame do telefone laqueado? Vão criar patrulhas para caçá-la nas ruas? Vão bloquear a atmosfera para interferir nas comunicações do celular de laquê? Vão proibir a venda de laquê suíço para mulheres que tenham celulares?
A quebra do monopólio das telecomunicações tem a virtude de impedir que as estatais mantenham sistemas tecnologicamente atrasados, impondo serviços de má qualidade aos usuários. Uma rede privatizada terá sua eficiência aumentada (e tarifas reduzidas) na medida em que disputar novas tecnologias, entendendo que dinheiro investido é a contrapartida do lucro esperado. Ganha quem investe na tecnologia certa e perde quem compra equipamento errado. Quando as coisas funcionam assim, o cliente ganha, as filas desaparecem e os preços caem. Quem acredita que essa escrita pode ser alterada com meia dúzia de leis não deve se esquecer que houve uma época em que generais e empresários brasileiros acreditaram que seria possível barrar a entrada de computadores em Pindorama. Atrasaram o desenvolvimento do país, azucrinaram a vida de milhões de pessoas e hoje fingem que não se lembram da praga que produziram.

Texto Anterior: Justiça do RS vai encaminhar pedido de intervenção ao STF
Próximo Texto: MST bloqueia estrada que liga PR a SP
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.