São Paulo, quarta-feira, 4 de junho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Monet é mais expressionista do que se pensa

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Todo paulistano culto ou bem-informado está sentindo, há uma semana, o peso de uma obrigação, de um compromisso. Ele tem de ver a exposição de Monet no Masp. A preguiça o havia paralisado na mostra de Morandi; mas Monet é obrigatório. Ele pensa nas filas, na multidão, nos grupos de crianças... estremece, entra em pânico, enregela-se e não sai de casa.
Há um forte argumento para não ver a exposição de Monet. Foi formulado por um dos maiores admiradores do pintor, o escritor Marcel Proust (1871-1922). Num artigo sobre Monet, Proust critica o "espírito de peregrinação" que ocupa os amantes da arte.
Visitar os lugares que Monet pintou, por exemplo; ir até Giverny apreciar o seu famoso jardim. Nada disso é real, diz Proust. É como se houvesse uma tabuleta diante desses lugares, dizendo: "Aqui você pode apreciar, aprecie".
A exposição Monet está coberta de tabuletas desse gênero. Como nunca, esta exposição foi "preparada" pela imprensa e pela propaganda. Rodin atraiu mais público do que se pensava. Impôs-se então bater o recorde de Rodin. Entre as duas exposições, houve a Bienal, objeto de uma campanha publicitária feita com extremo talento.
Vai-se à exposição Monet não necessariamente para ver os quadros, mas para comprovar que São Paulo é um centro artístico de importância mundial. E não são tantos quadros assim.
Para muita gente, as maiores atrações são os jogos de computador, a sala de Linéia, a loja de souvenires. Isso acontece em todos os museus do mundo: tornaram-se sucursais amadoras e incipientes da Disneylândia, e não é por acaso que se considera, hoje em dia, uma visita a museus como programa ideal para crianças.
Nada de errado nisso, aliás. Em um computador ou numa sala de brinquedos, o público se sente participando de alguma coisa, colaborando com o evento. Os quadros são menos interativos, impõem uma admiração pré-fabricada.
Como vencer isso? Como ver os quadros de Monet, e não simplesmente fazer o que se faz nessas exposições, ou seja, verificar que eles estão ali? Faço uma tentativa, recorrendo novamente a Proust. No segundo volume de "Em Busca do Tempo Perdido", ele conta uma visita ao ateliê do pintor Elstir -que, no romance, corresponde bastante à figura histórica de Monet. O narrador fica vendo os quadros de Elstir, e desenvolve o seguinte raciocínio.
Elstir estaria fazendo, em pintura, aquilo que na arte literária se chama de metáfora. Ou seja, revelava semelhanças entre coisas separadas entre si. Assim como um poeta compara (aproxima) as estrelas aos olhos da amada, o pintor aproximava céu e mar, água e terra, a tal ponto que não se podia mais distinguir, na paisagem, o que era cidade, o que era porto, o que era nuvem, o que era cais.
Monet, ou o Elstir de Proust, realizava essa operação literária, ou essa metáfora. Há um quadro na exposição do Masp que mostra isso perfeitamente. Nas "Ninféias" de 1914-1917 (pág. 90 do catálogo), vemos um lago de plantas aquáticas transformado em céu pelo reflexo, de modo que as nuvens bóiam no tanque, o azul celeste esmaece em branco, e não conseguimos mais saber, exceto por uma operação intelectual, o que é água e o que é céu.
Proust chama isso de "metáfora". Mas é sempre possível complicar um pouco mais as coisas. Quando Proust chama isso de metáfora, ele próprio está fazendo uma metáfora. Ou seja: se comparar os olhos da amada a uma estrela é fazer uma metáfora, comparar uma pintura a uma metáfora é também fazer metáfora.
Mas será que quando Monet pinta o reflexo do céu num lago, de modo a confundir num mesmo plano as nuvens e as plantas, ele está "realmente" fazendo uma metáfora? Nesse caso, seria necessário que cada ninféia "parecesse" uma nuvem, que cada nuvem "parecesse" uma flor aquática. No quadro, não é isso o que ocorre.
O que ocorre, na transposição água-céu, mereceria talvez outro nome, o de ironia, algo que tem a ver com ilusão, com inversão, com intenções oblíquas, com um engano que se autodenuncia.
Em muitos quadros de Monet é disso que se trata. Ele pôs algumas vezes o céu ao rés-do-chão; mais exatamente, ao rés-da-água. Inverte o mundo real; do mesmo modo, fixou, num quadro, "impressões". Paralisa o movimento, captura o clima ou uma mudança de estação. O impressionismo é, assim, um paradoxo: o fugidio paralisado numa tela.
Mas dizer isso é dizer uma trivialidade. Pensemos em outra coisa. A pintura, desde a Renascença, procurou resolver outro paradoxo: representar, em duas dimensões, uma realidade que tem três dimensões. A conquista técnica da perspectiva foi vencer, digamos, o problema do espaço real.
Poderíamos julgar o impressionismo como uma tentativa de incluir, na pintura, uma quarta dimensão, o tempo.
A série das catedrais de Rouen, a fosforescência do sol, o movimento dos reflexos na água, as figuras pela metade na tela, os motivos cotidianos, tudo o que acertadamente se identifica com o "fugidio" e o instantâneo no impressionismo serviu como sinal, como senha para a visualização do tempo.
Mas o mérito da exposição de Monet no Masp está, principalmente, em mostrar as últimas obras do pintor. Faço então uma revelação jornalística. Os últimos quadros de Monet não são (repito), não são impressionistas.
Aquelas flores descabeladas, as pontes japonesas que parecem cordões de passamanaria, uns salgueiros irreconhecíveis e dramáticos, nada têm de "impressionistas", algo de delicado, fugaz, sorridente, instável, burguês.
A ironia de Monet brincava com um mundo invertido, de reflexos enganosos; sua pintura fazia a água virar céu e vice-versa. Contudo, nas últimas obras, essa proeza visual parece que não contenta mais o pintor.
O tempo, com suas variações de luz, com seus instantâneos de cor, parece revoltar-se, e por outro lado se torna repetitivo; provê apenas modificações mínimas, minimalistas, da realidade.
Pintando ironicamente o "mundo de cabeça para baixo", como no quadro das ninféias, a tendência de Monet era anular a profundidade, a perspectiva. Pintando o tempo e o movimento, Monet encontrou a repetição. É como se, entre uma revolução irônica e um cotidiano de fugacidade e de instantes, suas descobertas técnicas se limitassem, então, a um devaneio conformista, e não a uma alteração completa de nosso mundo, de nosso modo de ver o mundo.
Por isso mesmo a gente vai ver a exposição apenas para comprovar que Monet é simplesmente Monet, o mestre do impressionismo.
Mas atenção. O mérito da mostra é que não estão ali seus quadros mais famosos e mais bonitos. Seria interessante ver como são "feios" muitos dos quadros da exposição.
Monet parece ter-se dedicado, nos últimos anos, a pintar raivosamente não os efeitos do que via, mas sim o processo de sua pintura. Dedicou-se assim a retratar a fúria dessa inversão fracassada, fazendo de seus quadros não mais o lugar aprazível da mudança, da metáfora ou da ironia, mas sim o palco de uma revolução. Teatralizou, dramatizou, a ironia de suas obras anteriores. Fixou não o fugaz, mas o gesto que, impotente, tenta fixar a fugacidade. É mais desesperado e expressionista do que se pensa.

Texto Anterior: Juan Uslé justifica sua opção pela pintura
Próximo Texto: Clã Barreto gasta R$ 5,5 mi sob sol cearense
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.