São Paulo, quinta-feira, 5 de junho de 1997
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Mais justiça e menos ordem

ROBERTO FREIRE

Na semana retrasada, após declarações no mínimo polêmicas dadas por um dos coordenadores do movimento dos sem-terra, o presidente da República replicou com um discurso duro, redimensionando o ato político de posse de dois ministros de Estado.
Sem qualquer tergiversação, assumiu a postura da ordem e condenou, indistintamente, movimentos que, em última instância, teriam como únicos objetivos invadir prédios públicos e propriedades privadas e fomentar a "baderna". Aliás, o mesmo raciocínio desenvolvido também na ocasião pelo presidente do Senado Federal e um dos maiores expoentes do PFL nacional, Antonio Carlos Magalhães.
Para quem conhece a política brasileira e o movimento de idéias, particularmente aquele que se situa no campo da esquerda, a reação do presidente causou perplexidade. Sem qualificar atos e movimentos, Fernando Henrique Cardoso acabou reforçando o discurso da ordem, um postulado nitidamente de fundo conservador/liberal.
É inadmissível um governo que se diz reformista desconhecer quão democrática e justa é a luta dos sem-terra, sem-teto, sem-cidadania. Qualificando, conhecendo e apontando soluções é possível condenar alguns métodos equivocados de ação política, incluindo todo tipo de violência, agressão e invasão de prédios públicos, que impedem o funcionamento de repartições e muitas vezes recorrem a "reféns". Mas isso o sr. presidente não fez.
Conforme já havíamos exposto em recente artigo publicado na revista "Política Comparada", de Brasília, elaborado conjuntamente com o sociólogo Caetano Araújo, a esquerda reconhece hoje a importância de um ordenamento jurídico-legal que garanta a todos o exercício da cidadania e que seja respeitado. No entanto, "sabemos que essa ordem redunda sistematicamente em desigualdades insuperáveis".
Nesse sentido, concluímos: "O primado da igualdade leva-nos a questionar a ordem sempre que esta conflita com a justiça", e a democracia tem mecanismos e espaços para esse questionamento.
Tal raciocínio, e aqui não deve haver margem a dúvida, não pode ser formulado para romper com o Estado democrático de Direito. Entretanto, não podemos desprezar realidades sociais nem tampouco desconhecer que o arcabouço legal, sempre aberto e com espaços para avanços, altera-se com o desenvolvimento da própria sociedade.
Portanto, a ação de ocupar terras não utilizadas para fins produtivos ou áreas urbanas contingenciadas para fins de especulação imobiliária não pode ser considerada "baderna". Muito menos manifestações ou pressões da cidadania em defesa de direitos que lhe são subtraídos.
Não podemos coonestar a iniquidade social em nome da ordem. Se compreendemos que a violência como instrumento político só se justifica historicamente e, se for o caso, para derrubar o "tirano", também entendemos que a subordinação a uma ordem injusta, no limite, desmantela o próprio regime democrático.
O Brasil, um país de desequilíbrios, se não almeja que tais contradições se aprofundem, precisa adotar atitudes de ordem democrática, e urgentes, para que a demanda social possa se expressar e se resolver no plano da legalidade.
A democracia representativa, que nos embala há mais de um século, já é insuficiente. A ela há a necessidade de acoplar práticas de democracia direta, infelizmente obstaculizadas pela ação das elites conservadoras. O governo, em vez de se assustar com a "baderna", deveria recorrer à sua hegemonia política para abrir os canais das reformas das estruturas sociais e de alargamento democrático, visando a uma maior participação da cidadania.
E projetos nesse sentido não faltam. Há poucos dias apresentei no Senado projeto dispondo sobre política urbana, que concede ao poder público municipal instrumentos para disciplinar melhor o uso do solo, sempre na perspectiva social e em contraposição aos interesses da especulação imobiliária.
Está tramitando, mas vemos no horizonte a reação que gerará nas forças conservadoras. Não temos ilusão: ele só será aprovado se pudermos mobilizar amplamente a sociedade em seu apoio. Não podemos esperar muita coisa de quem só se preocupa com a ordem.
Fernando Henrique é um homem historicamente comprometido com a justiça. Esperamos que o seu discurso, ao qual nos referimos, seja apenas uma peça de retórica concebida para agradar suas bases de direita e que não venha a se constituir em política de seu governo. Aí não mais seria apenas um equívoco; seria o fim de uma proposta social-democrática e a sua dissolução no projeto liberal e conservador das elites dominantes brasileiras.

E-mail: rfreire@senador.gov.br

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