São Paulo, quinta-feira, 5 de junho de 1997
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Euro, França e política

VINICIUS TORRES FREIRE

Atropelada pelo capital desembestado na era da mundialização econômica, a política maior parece morta. Não há o que fazer diante da globalização, força da natureza que obriga todos os países a internacionalizar suas economias. A pena para os recalcitrantes é levar a breca na competição mundial.
Mas, mesmo sem futuro, alguns personagens da velha política do século ainda estrebucham, ao menos na Europa. Enquanto estertoram como atores políticos, os mais ou menos deserdados da ordem liberal, refugos da máquina da mundialização, avisam que seu espectro ainda ronda o planeta -e talvez isso venha a acabar mal.
Não se trata aqui de considerar, de maneira tosca, as greves de 95 ou a vitória socialista na França como prenúncios de alguma "virada" política. O rosa do socialismo francês já estava descorado desde os primeiros anos do governo Mitterrand. Os imperativos da unificação européia, ela mesma determinada pela globalização, devem obrigar o governo socialista a empunhar uma bandeira branca, ainda que a rendição não seja incondicional.
O premiê Jospin não pode seguir uma política liberal estrita, necessária para que a França adote a moeda única européia, sob pena de arruinar de vez a imagem do partido. Ao mesmo tempo, não pode abrir mão da União Européia. Por sorte, Jospin talvez possa contar com o fato de que seus vizinhos têm também dificuldades para se adaptar ao austero figurino orçamentário do euro, firmado no Tratado de Maastricht. Estudo do Instituto Alemão para a Pesquisa Econômica indica que a adaptação aos critérios de Maastricht provocaria recessão ou crescimento mais medíocre do que o atual e mais desemprego na Europa.
A decisão sueca de desistir por enquanto do euro e a crise gerada na austera Alemanha pela decisão de recorrer à "contabilidade criadora" para conformar as contas do país aos índices requeridos pela unificação monetária suscitaram ainda mais rumores de que os critérios ou o calendário de Maastricht possam talvez ser flexibilizados, aposta implícita no programa socialista francês, que deve ter apoio da Europa do Mediterrâneo.
Retomando o fio da meada: ainda assim, haverá Europa unificada pela moeda; isto é, um grupo importante de países europeus estará submetido aos rigores de um banco central cioso da estabilidade monetária, o que significa também contenção de gastos sociais. Talvez por um tempo atenuada, a política liberal ainda deverá prevalecer, acompanhada de desemprego e menor proteção social.
A submissão aos imperativos desse programa vai descaracterizar de vez as diferenças políticas entre os partidos encarregados de implementá-lo, o que pode gerar desconfiança perigosa em relação à democracia. Nos EUA, a indiferenciação política já parece provocar indiferença -Clinton foi reconduzido ao poder por um quarto dos eleitores. Enquanto se cria um contexto que estimula o desinteresse político, deve crescer o descontentamento social, o que permite vislumbrar a perspectiva sombria de que, na falta de alternativa, possa surgir um caldo de cultura em que o espectro da insatisfação apele a aventureiros autoritários -o neofascista Le Pen já está aí.

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