São Paulo, sexta-feira, 6 de junho de 1997
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Salter vê o infinito enquanto dura

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REDAÇÃO

"Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure."
O escritor norte-americano James Salter, 72, provavelmente nunca ouviu a famosa frase que Vinicius de Moraes escreveu a respeito do amor, em 1939.
No entanto, em seu livro "Um Esporte e um Passatempo", que está sendo lançado no Brasil neste mês pela editora Imago, Salter consegue captar a essência do último terceto do "Soneto de Fidelidade", do chamado "poetinha".
O renomado crítico e escritor Sven Birkerts, autor do livro "As Elegias de Gutenberg", observou a respeito de "Light Years", a outra novela mais famosa de Salter: "É a sensação que temos, em certas passagens quase irresistíveis, de que o seu verdadeiro protagonista é o tempo".
O mesmo pode ser dito a respeito de "Um Esporte e Um Passatempo", em que Salter joga todas as suas qualidades de escritor de frases saborosas para mostrar um esboço do infinito enquanto ele dura.
Escrito em 1964, durante a efervescência da revolução sexual, o livro passou três anos rodando por editoras que se recusavam a publicá-lo.
Recomendado por um amigo do escritor, o livro, que reúne sentenças como "meu pau parecia criminosamente grande" sem restrições, acabou saindo pela Doubleday, editora conhecida então pelo seu tradicional e conservador clube de livros.
"Só algumas centenas de cópias dessa edição de 'Um Esporte e um Passatempo' foram vendidas, e um único e constrangido anúncio o descrevia como um livro que 'não é sobre beisebol"', escreveu Salter sobre o "début" desse trabalho, que acabou sendo o responsável pela sua projeção.
O autor diz que o livro era, ao seu modo, "um hino às pequenas cidades e vilas, a Paris, à arquitetura, a dias que já se foram, aos recantos da França e, é claro, ao mais incandescente de todos os prazeres terrenos". E não seria demais acrescentar: ao sexo.
Toda a história se passa narrada por um norte-americano sem nome, já com alguma idade nas costas, que, nas primeiras páginas do livro, viaja de trem e recita frases singelas como: "Debruço-me na janela, e o ar fresco me lava, um ar que parece ainda não ter sido respirado por ninguém".
Salter vai acrescentando lenha na caldeira dessa locomotiva e, paulatinamente, começa a povoar as cidadezinhas rurais francesas -e mesmo Paris- de personagens tão resignados quanto os de "Fargo", filme dos irmãos Coen.
As pistas são dadas pelo próprio narrador anônimo: "É nas cidades pequenas que a gente descobre um país, naquele tipo de conhecimento que se adquire com os dias e noites sem importância".
É com a chegada de Phillip Dean que Salter transporta o leitor para um espírito -ainda que melancólico- de "carpe diem" -algo como aproveite o dia, colha o dia.
É emblemática a situação em que o recém-chegado Dean -"carpe dean?"-, chateado com um jantar enfadonho com o casal Job -que mostrava slides de uma viagem para um estação de esqui na Áustria-, leva o narrador no seu possante automóvel Delage para a agitada noite de Dijon.
"Saímos de Innsbruck para o manicômio", escreve o acanhado narrador. Em um boteco em Dijon é que aparece, discretamente, a personagem que transformaria, algumas páginas depois, o livro em uma espécie de Kama Sutra.
Evocando os autores clássicos libertinos, Salter conduz o casal formado por Dean, 24, ex-estudante de Yale, e Anne-Marie Costallat, 18, vendedora francesa, por uma viagem ao redor das camas, mesas e, por vezes, banhos, de diversos hotéis, pousadinhas e restaurantes de cidadelas da França.
Apesar de "nádegas redondas e fortes como uma panturrilha", a sex symbol de Salter tem dentes escuros, herpes no queixo, mau hálito, por vezes cheira a cebola.
Anne-Marie também não ganha Dean -ou o narrador- pelas suas qualidades intelectuais. Ela é do tipo que não parece ter lido Proust, apesar de tê-lo feito -a citação que Salter faz do escritor francês nesse momento não é fortuita. O autor certamente é um dos que anda "Em Busca do Tempo Perdido".
Por trás de Anne-Marie está um vigor sexual que consegue levar Dean além da melancolia da vida cotidiana.
E no relacionamento ficam patentes duas visões sobre o mesmo tema.
Anne-Marie tem prazer em pensar que o caso está apenas começando. Para ele, cada hora é um tormento porque é como chegar mais perto do fim.
E aí estão os grandes temas do pequeno romance: a passagem do tempo e a paixão que apenas alguns conseguem viver por algum tempo.
Por um lado Salter usa como epígrafe a frase: "Lembra-te de que a vida deste mundo não passa de um esporte e um passatempo", do Alcorão, livro sagrado do islamismo.
Mas Salter não hesitaria em dizer: quase tudo é um esporte e um passatempo.

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