São Paulo, sexta-feira, 6 de junho de 1997
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Testemunha ocular da folha-seca

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Reza a lenda que o melhor vendedor do mundo é aquele que convence um esquimó a comprar geladeira. Aqui! O melhor vendedor do mundo foi o cara que vendeu a idéia de um jogo entre o Fluminense e o Grasshoper, um time suíço que aí pelos idos de 1951 vencera um complicadíssimo torneio num dos cantões da confederação helvética.
O Fluminense também havia vencido o campeonato carioca de 51, e seu time, desacreditado e pichado pelos entendidos, daria a base para a seleção nacional que no ano seguinte obteria o primeiro título internacional para nossas cores em chão estrangeiro: o Pan-Americano do Chile.
Fui ao jogo porque nada tinha melhor a fazer na noite perdida que não mereceria perdão nem memória. Não podia esperar emoções. O Fluminense marcava por zona e jogava recuado, explorando os contra-ataques. O time suíço era o padrão daquele tipo de retranca que passou à história com o nome (mais do que óbvio) de "ferrolho suíço". Era o próprio.
O jogo ameaçava ser tão interessante quanto um discurso do Roberto Campos sobre as influências de Ezra Pound na obra do Tiririca. Para piorar as coisas, garoava -e eu detesto garoa, seja a de Paris ou a de São Paulo. O espetáculo seria servido frio, monótono, ninguém faria força para sair do 0 a 0.
O Fluminense tinha alguns craques, a dupla Castilho-Veludo, Pinheiro, Telê, mas sobretudo Didi. Os suíços eram grandalhões, branquelões, usavam calções que pareciam cuecas antigas, tipo samba-canção. A uns 15, 20 minutos para o final da partida, houve uma falta contra os suíços a metro e meio da grande área, um pouco à direita.
Naquele tempo -rezam as Escrituras-, na hora de cobrar penalidades ditas perigosas, a regra era apelar para a ignorância. O juiz contava as jardas. Sob as traves, o goleiro fazia gestos aflitos, mostrando brechas na barreira. E havia a barreira em si, compacta, todo mundo com as mãos à frente dos calções, protegendo a fragilidade da carne. Vinha então, às cegas, o tiro violento que os locutores chamavam de "morteiro". Alguns desses dinamitadores ficaram na história, como Hércules ou Rodrigues.
O melhor mesmo, o insuperável, era Jair da Rosa Pinto, com canelas mais finas do que as de um manequim da Maison Dior. Contudo, tinham um efeito letal: chutava nas brechas, com uma violência que nunca houve igual. No Sul-Americano de 49 quebrara a perna de um beque boliviano, um tal de Bustamante. O gringo não teve tempo de tirar o corpo da trajetória, a bola bateu-lhe nas canelas, foi parar no Souza Aguiar. No dia seguinte, os jornais publicaram a radiografia de sua tíbia esfacelada.
Jair era um só, por isso todo mundo fazia questão de pronunciar seu santo nome de forma completa, Jair da Rosa Pinto. Os mais entendidos acrescentavam: de Barra Mansa.
Hércules havia muito não jogava mais, Rodrigues estava no Palmeiras. Quem cobrava essas faltas para o Fluminense era Joel, ponta-esquerda como os citados, mas perna-de-pau comprovado, embora de chute forte. Não jogava aquela noite, seu substituto era Quincas, que nem chute forte tinha.
Ninguém queria bater aquela falta. Perto da bola, mãos apoiadas na cintura, em forma de jarra, Didi olhava o chão, os pés encostados no couro. A barreira formou-se com todos os jogadores da Suíça presentes, mais os espíritos de Guilherme Tell, Calvino, Rousseau e do inventor do relógio de cuco, que é tido como suíço, mas parece que nasceu na Áustria.
Houve quem pensasse que o juiz apitara alguma coisa interrompendo o lance. O goleiro julgava que a cobrança seria repetida. O pasmo durou aquilo que os italianos chamam de "átimo".
Somente Didi sabia o que havia feito. Numa corrida lenta, arrastando aquele manto de príncipe de rancho que Nelson Rodrigues descobrira nele, dirigia-se para o centro do campo, a cabeça baixa, os cotovelos presos ao corpo, os braços sacudidos ao ritmo da breve corrida.
Então o juiz fez o gesto que indicava a validade do gol. Os suíços não reclamaram, tampouco entenderam. Sim, estava feito. O primeiro gol que mais tarde ganharia o nome de "folha seca". Hoje, até no Anapolina, no Tuna Luso e no Dom Bosco sabem cobrar falta assim. Zico foi mestre, o único que se aproximou de Didi.
Naquela noite, saindo do Maracanã, eu ia apatetado. Em casa, no escuro da noite, desconfiei que havia presenciado um fato histórico. Sempre invejei aqueles que viram Nijinski dar o famoso salto do "Espectro da Rosa", aquela massa muscular caindo de metro e meio de altura sem fazer barulho no chão do palco. Eu vira coisa melhor e sabia.

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