São Paulo, quarta-feira, 11 de junho de 1997
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Ed Mort é um macunaíma sem esperteza

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Ed Mort", filme de Alain Fresnot baseado nas histórias de Luis Fernando Veríssimo, não desagrada o espectador. Tem boas piadas e bons atores (Cláudia Abreu, Paulo Betti, Ari Fontoura, Irene Ravache etc. etc.).
Mas, ao mesmo tempo, não pude evitar uma série de frustrações. Algumas são culpa do próprio filme, outras nem tanto. Procuro sistematizar o que venho sentindo.
Há uns dois ou três anos, mais ou menos, registrou-se uma espécie de "renascimento" do cinema nacional, depois da destruição promovida pelo governo Collor. Filmes como "Carlota Joaquina", "Lamarca", "Beijo 2238" e "Sábado" conseguiram razoável sucesso de público.
Parece que entramos numa segunda fase do cinema pós-Collor. "Pequeno Dicionário Amoroso", "O Que É Isso, Companheiro?" e, agora, "Ed Mort" apresentam-se explicitamente como filmes comerciais, buscando o êxito que seus antecessores imediatos obtiveram meio sem querer.
O resultado é uma perda de tensão, de seriedade, de estranheza, e uma perda até no quesito "deboche", coisa em que o cinema nacional sempre foi especialista. O filme de Alain Fresnot pretende ser uma paródia dos clássicos policiais de Humphrey Bogart; é entretanto uma paródia bem-comportada, sem deboche tropical, sem corrosão.
Nos filmes de Bogart, nos romances de Raymond Chandler e Dashiell Hammet, o detetive particular sempre se envolvia num caso complicadíssimo, passava a maior parte do tempo iludido por uma mulher fatal, e terminava recusando, em nome de sua integridade e do seu caráter, as vantagens do sexo e do dinheiro.
Aquele detetive era um herói incorruptível, que terminava dizendo, por modéstia moral: "Não passo de um trouxa, de um fracassado". Mas o leitor, ou o espectador, sabia que não era assim. Na verdade, ele era um herói; perdia tudo, os dólares e a loura, porque não se corrompia.
Ed Mort não é um herói que, recusando corromper-se, brinca dizendo que é trouxa. Ele é trouxa mesmo. E só por isso não se corrompe. No final do filme, ele sai como perdedor. Mas não é o perdedor bogartiano, hollywoodiano, que na derrota afirma seus ideais; é perdedor porque bobeou.
Tudo isso poderia ter uma justificação, a saber: como estamos fazendo paródia do cinema norte-americano e como somos brasileiros, essa idéia de herói incorruptível tinha mesmo de ser negada. De modo que não estamos gozando apenas os americanos, mas estamos gozando também os brasileiros.
O filme padece dessa ambiguidade. Goza dos brasileiros quando pretendem ser bogartianos; mas com isso faz mais um espetáculo de autopunição do que de paródia. A derrota de Ed Mort significa: "Seria melhor se ele fosse mais esperto"; a derrota de um Bogart significa: "É melhor ser derrotado sabendo que me fizeram de trouxa".
Atende-se, com isso, a um apelo comercialíssimo e muito ideológico. Como no Brasil só os espertos se dão bem, é uma péssima idéia não ser esperto. Isso os filmes de Hollywood também diziam. Mas, como nos filmes a idéia de ser herói era glorificada, e isso era uma idiotice, trataremos brasileiramente de gozar o heroísmo. Ed Mort é assim um macunaíma sem esperteza.
O filme poderia tornar esse "macunaíma sem esperteza" um símbolo do brasileiro médio, ao mesmo indignado e tolerante, malandro e iludido. Poderia ensinar-nos, de modo brechtiano, a rejeitar esse personagem.
Mas como é um filme comercial, explicitamente comercial, desistiu desse caminho. Todas as falhas formais de "Ed Mort" podem ser explicadas a partir daí.
É um filme que abusa dos "close-ups", como notou Inácio Araújo. Sentimos que Paulo Betti ocupa exageradamente o espaço da tela. A razão para isso é literal: não quer ter distância do personagem, não quer criticá-lo.
Os detetives bogartianos eram homossexuais enrustidos: recusando-se às seduções da mulher fatal, terminavam solitários. O tempo todo, em "Ed Mort", há uma rejeição ao homossexualismo; é esse o único ponto de honra, a despeito de várias brincadeiras e ambiguidades, em que Ed Mort não cede por princípio, e não por ser trouxa.
Tudo se resume ao familiar. E é assim que o filme recorre a aparições reconhecíveis: Chico Buarque, Gilberto Gil, Cauby Peixoto, Zé do Caixão surgem na tela, como a dizer que tudo é reconhecível, que estamos em família.
"Estamos em casa", parece dizer o filme o tempo todo. Um país onde podemos gozar dos americanos porque eles são heróis e de nós mesmos porque somos idiotas. Mas que paródia é essa, que confirma a nossa própria cretinice?
No começo do filme, o protagonista acorda comendo um pastel. Coisa muito paulista. Mas então as aventuras de Ed Mort deveriam terminar em pizza, para indignação do público.
Não, o filme não termina em pizza, nem em heroísmo derrotado. Termina em conformismo do anti-herói. Ed Mort não se corrompe na história do filme. Mas o filme "Ed Mort" se corrompe ao buscar um sucesso comercial sem problemas, que só repita o bordão ideológico do momento: todo brasileiro é trouxa, mas não tem muito do que reclamar a esse respeito, com uma Cláudia Abreu por perto.

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