São Paulo, quarta-feira, 11 de junho de 1997 |
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Ed Mort é um macunaíma sem esperteza
MARCELO COELHO
Mas, ao mesmo tempo, não pude evitar uma série de frustrações. Algumas são culpa do próprio filme, outras nem tanto. Procuro sistematizar o que venho sentindo. Há uns dois ou três anos, mais ou menos, registrou-se uma espécie de "renascimento" do cinema nacional, depois da destruição promovida pelo governo Collor. Filmes como "Carlota Joaquina", "Lamarca", "Beijo 2238" e "Sábado" conseguiram razoável sucesso de público. Parece que entramos numa segunda fase do cinema pós-Collor. "Pequeno Dicionário Amoroso", "O Que É Isso, Companheiro?" e, agora, "Ed Mort" apresentam-se explicitamente como filmes comerciais, buscando o êxito que seus antecessores imediatos obtiveram meio sem querer. O resultado é uma perda de tensão, de seriedade, de estranheza, e uma perda até no quesito "deboche", coisa em que o cinema nacional sempre foi especialista. O filme de Alain Fresnot pretende ser uma paródia dos clássicos policiais de Humphrey Bogart; é entretanto uma paródia bem-comportada, sem deboche tropical, sem corrosão. Nos filmes de Bogart, nos romances de Raymond Chandler e Dashiell Hammet, o detetive particular sempre se envolvia num caso complicadíssimo, passava a maior parte do tempo iludido por uma mulher fatal, e terminava recusando, em nome de sua integridade e do seu caráter, as vantagens do sexo e do dinheiro. Aquele detetive era um herói incorruptível, que terminava dizendo, por modéstia moral: "Não passo de um trouxa, de um fracassado". Mas o leitor, ou o espectador, sabia que não era assim. Na verdade, ele era um herói; perdia tudo, os dólares e a loura, porque não se corrompia. Ed Mort não é um herói que, recusando corromper-se, brinca dizendo que é trouxa. Ele é trouxa mesmo. E só por isso não se corrompe. No final do filme, ele sai como perdedor. Mas não é o perdedor bogartiano, hollywoodiano, que na derrota afirma seus ideais; é perdedor porque bobeou. Tudo isso poderia ter uma justificação, a saber: como estamos fazendo paródia do cinema norte-americano e como somos brasileiros, essa idéia de herói incorruptível tinha mesmo de ser negada. De modo que não estamos gozando apenas os americanos, mas estamos gozando também os brasileiros. O filme padece dessa ambiguidade. Goza dos brasileiros quando pretendem ser bogartianos; mas com isso faz mais um espetáculo de autopunição do que de paródia. A derrota de Ed Mort significa: "Seria melhor se ele fosse mais esperto"; a derrota de um Bogart significa: "É melhor ser derrotado sabendo que me fizeram de trouxa". Atende-se, com isso, a um apelo comercialíssimo e muito ideológico. Como no Brasil só os espertos se dão bem, é uma péssima idéia não ser esperto. Isso os filmes de Hollywood também diziam. Mas, como nos filmes a idéia de ser herói era glorificada, e isso era uma idiotice, trataremos brasileiramente de gozar o heroísmo. Ed Mort é assim um macunaíma sem esperteza. O filme poderia tornar esse "macunaíma sem esperteza" um símbolo do brasileiro médio, ao mesmo indignado e tolerante, malandro e iludido. Poderia ensinar-nos, de modo brechtiano, a rejeitar esse personagem. Mas como é um filme comercial, explicitamente comercial, desistiu desse caminho. Todas as falhas formais de "Ed Mort" podem ser explicadas a partir daí. É um filme que abusa dos "close-ups", como notou Inácio Araújo. Sentimos que Paulo Betti ocupa exageradamente o espaço da tela. A razão para isso é literal: não quer ter distância do personagem, não quer criticá-lo. Os detetives bogartianos eram homossexuais enrustidos: recusando-se às seduções da mulher fatal, terminavam solitários. O tempo todo, em "Ed Mort", há uma rejeição ao homossexualismo; é esse o único ponto de honra, a despeito de várias brincadeiras e ambiguidades, em que Ed Mort não cede por princípio, e não por ser trouxa. Tudo se resume ao familiar. E é assim que o filme recorre a aparições reconhecíveis: Chico Buarque, Gilberto Gil, Cauby Peixoto, Zé do Caixão surgem na tela, como a dizer que tudo é reconhecível, que estamos em família. "Estamos em casa", parece dizer o filme o tempo todo. Um país onde podemos gozar dos americanos porque eles são heróis e de nós mesmos porque somos idiotas. Mas que paródia é essa, que confirma a nossa própria cretinice? No começo do filme, o protagonista acorda comendo um pastel. Coisa muito paulista. Mas então as aventuras de Ed Mort deveriam terminar em pizza, para indignação do público. Não, o filme não termina em pizza, nem em heroísmo derrotado. Termina em conformismo do anti-herói. Ed Mort não se corrompe na história do filme. Mas o filme "Ed Mort" se corrompe ao buscar um sucesso comercial sem problemas, que só repita o bordão ideológico do momento: todo brasileiro é trouxa, mas não tem muito do que reclamar a esse respeito, com uma Cláudia Abreu por perto. Texto Anterior: Londrina dança seu talento Próximo Texto: Ceará estuda criação de nova lei de incentivo Índice |
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