São Paulo, sábado, 14 de junho de 1997
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Os blecautes de abril

THADEU NIEMEYER; OLAVO CABRAL RAMOS FILHO

THADEU NIEMEYER
OLAVO CABRAL RAMOS FILHO
O grande desafio dos dirigentes do setor elétrico é encontrar os meios de dar o mínimo de conhecimento à sociedade sobre o funcionamento de um sistema elétrico sem exagerados aprofundamentos técnicos, que a grande maioria não está nem interessada em saber nem precisaria saber para poder influenciar democraticamente no processo como cidadãos e consumidores.
Orwell, em ensaio de 1945, registrou sua crença de que liberdade política e simplicidade de linguagem são coisas que devem andar juntas. Escreveu também: "Ter algum modo de testar a opinião do público é uma necessidade óbvia de um governo moderno, muito mais num país democrático do que num país totalitário." Concluiu: "Seu complemento é a habilidade em falar para o homem comum com palavras que ele entenderá e fará compreender que as entendeu."
O sistema interligado da região Sudeste, nos dias 24 e 25 de abril, defrontou-se com o desligamento de cerca de 15% da carga. Foram afetadas diversas localidades, principalmente no Estado de São Paulo. As causas, em momento nenhum foram claramente expostas à sociedade, quer pelos dirigentes do Ministério de Minas e Energia, quer pelos dirigentes das empresas federais e estaduais envolvidas.
Os técnicos e gerentes de segundo escalão do setor elétrico estão intimidados, pois, para a maioria deles, pode a sociedade estar certa, são claros dois pontos: a) caso se isolem como bruxos, únicos detentores do saber científico-tecnológico, continuarão servindo a uma espécie de totalitarismo permanente com membros do grupo dirigente; b) para as necessidades de um crescente controle democrático e público do setor, os homens comuns deverão ter o mínimo de conhecimento. A busca de uma autonomia crescente do movimento social e um consequente autodidatismo coletivo facilitariam as coisas.
A engenharia de sistemas de energia elétrica envolve fenômenos cujo entendimento é realmente difícil para o público em geral. Exemplo típico desse "mistério" é a denominada compensação de potência reativa, sobretudo em sistemas de transmissão de alta e extra-alta-tensão com linhas de transmissão longas.
O fornecimento ou absorção dessa potência, por equipamentos projetados para tal fim, tem tudo a ver com o controle de tensão -que o público leigo chama de voltagem- na rede elétrica. Isto é, essa potência é necessária para que o sistema possa manter o nível de tensão adequado ao transporte de energia elétrica das fontes de geração até a carga.
Precisaria ficar claro para o público consumidor que não faltou a principal mercadoria entregue pelas usinas geradoras -conhecida como energia elétrica-, mas sim um dos insumos complementares necessários à manutenção da qualidade do suprimento: o suporte de tensão.
Ainda, nesse ano de 1997, está razoavelmente confortável a disponibilidade de produção de "energia elétrica" ou "energia ativa", aquela menos misteriosa, pois é visível pelo público na água armazenada nos reservatórios, no girar das turbinas que usam essa água ou no girar dos motores que acionam as máquinas.
O assunto "suporte reativo" é uma constante preocupação. Cabe lembrar que recentemente a legislação elevou para o nível 0,92 o "fator de potência" dos grandes consumidores, atribuindo aos mesmos maior responsabilidades nos investimentos necessários para garantir o adequado suporte reativo.
Vários consumidores tiveram que instalar capacitores, que são um dos tipos de equipamentos usados no referido suporte. Por outro lado, as empresas distribuidoras devem também planejar e instalar equipamentos para suporte reativo ao longo da sua malha de transmissão e distribuição.
Entretanto, hoje existe um déficit no suporte de potência reativa no sistema interligado. Na área de São Paulo, nos momentos que antecederam o início do blecaute, o déficit era da ordem de 700 MVAR (Megavolt-Ampère-reativo). Nas áreas dos Estados de Rio de Janeiro, Espírito Santo, Goiás e no Distrito Federal, da ordem de outros 700 MVAR.
Em uma situação de adiamento de investimentos na expansão do sistema de transmissão, o déficit de suporte reativo torna-se ainda mais crítico quando, em cerca de 20 minutos a 25 minutos, o consumo global de carga no sistema Sul-Sudeste cresceu 8.000 MWs, no fim da tarde dos dias 24 e 25 de abril. Na subestação de Ibiúna, ponto terminal do tronco de corrente contínua de Itaipu, os relés de proteção dos motores das bombas de água de refrigeração das válvulas conversoras operaram por baixa tensão, desligando essas bombas e, consequentemente, toda a conversora.
Mais importante do que o esclarecimento do diagnóstico técnico acima resumido é a análise do motivo dessa situação.
Estamos vivendo as primeiras consequências das mudanças conceituais introduzidas no setor. Embora a natureza de um sistema interligado de base eminentemente hidráulica imponha um modelo cooperativo, busca-se implantar um modelo competitivo, desvalorizando-se o papel do concessionário, privilegiando o produtor independente de energia.
Nesse modelo, se não houver uma cobrança efetiva sobre o concessionário, poderá ocorrer uma priorização de investimentos extremamente afetada pela busca de bons resultados empresariais em detrimento da qualidade e da segurança. Os blecautes sinalizam a necessidade de o setor elétrico caminhar com mais equilíbrio em seu processo de mudança, eventualmente com competição, mas não a qualquer custo.
O cidadão comum não ficará aborrecido com explicações técnicas impalpáveis ou análises dialéticas sobre as mudanças institucionais programadas em marcha de rolo compressor para o setor elétrico, desde que não seja enganado no atacado pela afirmação de que tudo se resolverá pela privatização e pela competição.
Em abril de 1984 e agosto de 1985 ocorreram "apagões" maiores no Sudeste. Revendo as repercussões na época, verifica-se que as consequências em aprimoramento técnico-operacional foram importantes e competentes; porém, os hábitos e comportamentos dos dirigentes continuam "misteriosamente" imutáveis.

Olavo Cabral Ramos Filho, 59, engenheiro eletricista, ex-superintendente de Engenharia de Transmissão de Furnas -Centrais Elétricas S/A; é conselheiro do Clube de Engenharia e ex-professor adjunto da Escola de Engenharia da UFRJ.

Thadeu Niemeyer, 59, é secretário-geral do Ilumina -Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico; economista; ex-superintendente de Controle de Furnas -Centrais Elétricas S/A e ex-superintendente geral da Fundação Real Grandeza.

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