São Paulo, domingo, 15 de junho de 1997
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O momento decisivo da Europa

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Após a decisão de Jacques Chirac de antecipar as eleições -fato que, na ausência de uma crise política aberta, indicava sua certeza na vitória- e após uma campanha eleitoral curta, desanimada e marcada pela rejeição a toda a classe política, os franceses votaram e provocaram um abalo na vida política do país e da Europa.
Por muitos anos, os franceses denunciaram essa "monomania", mas a própria criação dessa idéia absurda já bastava para indicar a crise em que se enredaram. Pois se não há diferença entre a direita e a esquerda, igualmente submetidas às exigências do capitalismo financeiro internacional, então não haverá outra solução exceto a recusa, a explosão social ou a fuga para o voto de protesto que tanto beneficia a Frente Nacional.
No início da campanha, era essa a idéia dominante. Em poucos dias, ela voou em pedaços e foi substituída por outra, exatamente oposta: a esquerda podia ter êxito onde ela mesma falhara anteontem e onde a direita falhara ontem. É esta a inversão que precisamos compreender. Ao se deixar levar pela defesa ao mesmo tempo conservadora e irrealista social-estatista, o Partido Socialista contribuíra fortemente para a consolidação, junto à opinião pública, de uma imagem de impotência: ou se votava na direita e sacrificava-se a sociedade, ou, então, votava-se na esquerda e desencadeava-se uma crise européia de consequências quase certamente catastróficas.
Foi quando Jospin compreendeu que tinha que mostrar que a construção monetária européia não é incompatível com uma política social ativa. Ele o fez ao formular as condições sob as quais a França aceitaria a moeda única. Essas condições não contradizem em nada o tratado de Maastricht, ao mesmo tempo em que dão prova de vontade política ao proporem a criação de um órgão europeu de política econômica apto a contrabalançar o poderio do Banco Central europeu em vias de formação.
A direita apressou-se a adotar essas condições, e mesmo a Alemanha (inquieta com o que parecia ser a vontade francesa de recuar diante da independência do Banco Central) não manifestou abertamente sua oposição ao projeto socialista, o que faz pensar que talvez seja possível algum acordo entre os dois líderes da União Européia. Quanto à Itália, ela não pode deixar de apoiar a mesma França que endossa seu desejo de entrar para o clube da moeda única.
Em poucos dias, sem debates, decisão ou proclamação, o Partido Socialista tomou o rumo do modernismo e lançou-se à procura de uma política social que corrija os efeitos do tratado de Maastricht sem pôr em causa as suas cláusulas. Com isso, produziu-se um desequilíbrio entre as duas recusas que, combinadas, davam à opinião pública uma aparência de apatia. Os franceses não viram na direita outra coisa senão o prolongamento de sua impotência coletiva: sentiram-se vítimas ao se sentirem tratados como objetos. Na esquerda, viram a possibilidade de uma política ativa, a despeito das dúvidas quanto às reais possibilidades do partido socialista e apesar das próprias divisões entre os franceses quanto aos objetivos de uma tal política.
Já não será possível voltar atrás. Alternativamente, pode-se pensar que, à maneira trágica ditada por sua tradição política, a França não fez mais do que se aproximar dos outros países europeus, uma vez que a maioria deles tem governos social-democratas que procuram conscientemente uma maneira de conciliar a liberalização e globalização de suas economias com a manutenção de políticas sociais ativas. Opção que, na Holanda, resultou em forte recuo das taxas de desemprego. Em condições bastante diferentes, a Itália e o Reino Unido optaram recentemente pelo caminho da reconstrução social: de maneira mais limitada no Reino Unido, onde é fácil reconstruir depois da tormenta thatcheriana, do que na Itália, onde a urgência maior é a de conformar-se aos critérios de Maastricht -tarefa para o novo governo de esquerda, com apoio dos sindicatos.
São muitas as forças que se opõem à evolução da política francesa. Mas, também nesse ponto, a França está se aproximando de seus vizinhos -em especial os mediterrâneos-, pois o partido comunista não terá entre nós papel muito diferente do que desempenham a Rifondazione na Itália ou a Izquierda Unida na Espanha. É por isso que alijar a política e a tática de Jacques Chirac marca um momento decisivo na evolução da Europa.
Trata-se de um despertar do sonho da economia administrada -e isso a despeito do retardamento ou da limitação de certas privatizações. A Europa não se sente mais forçada a renunciar ao modelo social europeu que, até há pouco, passava por ser incompatível com a competitividade. Estamos diante de uma retomada da autoconfiança: a Europa deve fazer renascer o debate político e, contra extremismos de direita ou esquerda, contra a decomposição do Welfare State, fazer da união monetária uma ocasião de renovação da vida política, de adoção de novas políticas sociais.
O êxito da esquerda nas eleições francesas marca para o conjunto da Europa, e talvez mesmo para uma porção maior do globo, o fim da transição liberal, o renascimento dos debates sociais e políticos e, sobretudo, o renascimento da autoconfiança dos povos.

Tradução de Samuel Titan Jr..

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