São Paulo, domingo, 15 de junho de 1997
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Chile tem pegadas e carne de mastodonte

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

À primeira vista, o sítio de Monte Verde pareceria ter adicionado pouco à polêmica questão das datas do povoamento americano.
A pesquisa nesse sítio arqueológico avançou em mil anos a data mais antiga de um desses locais no continente, para 12.500 anos atrás, comparados aos 11.500 anos do sítio Clóvis. O grande impacto é geográfico: Clóvis fica nos EUA, e Monte Verde, no Chile.
"Como poderiam as pessoas chegar na América do Norte e na ponta sul da América do Sul aproximadamente na mesma época?", pergunta o líder das escavações em Monte Verde, Tom Dillehay, da Universidade de Kentucky, de Lexington, Kentucky.
Não há resposta precisa ainda. Há quem diga que mais de uma onda de colonizadores veio para as Américas.
Esses colonos teriam vindo da Ásia pelo estreito de Bering, entre Rússia e Alasca (EUA), quando o mar estava mais baixo devido ao acúmulo de água em geleiras.
Para estar no Chile 12.500 anos atrás, teriam de ter cruzado essa ponte, a "Beríngia", há mais de 20 mil anos, segundo comentou outro pesquisador da área, o arqueólogo David Meltzer, da Universidade Metodista do Sul, de Dallas, Texas, sul dos EUA.
Mas também é possível uma vinda por mar. Os povos das ilhas do Pacífico têm uma grande tradição de navegação oceânica; foi assim que colonizaram os inúmeros arquipélagos da Oceania.
Curiosamente, já houve até um "experimento" sobre a viabilidade desse tipo de navegação -embora na direção inversa.
O norueguês Thor Heyerdahl quis provar que os povos da América do Sul poderiam ter colonizado as ilhas do Pacífico.
Ele partiu do Peru em 1947 a bordo de uma balsa improvisada, a Kon-Tiki, semelhante às dos antigos povos da região.
Heyerdahl e uma tripulação pequena conseguiram chegar vivos depois de uma épica viagem de quase 7.000 km e 101 dias até as ilhas Tuamutu, na Polinésia.
Navegadores ou não, Dillehay está faz 20 anos procurando entender como viviam os "paleoíndios" do sul chileno.
O sítio foi descoberto acidentalmente em 1976 por chilenos que descobriram grandes ossos de mastodontes em uma região de charco.
Esse ambiente pantanoso está por trás da excelente preservação dos fósseis de Monte Verde. A grande responsável é a "turfa". Trata-se de restos vegetais em decomposição, formados dentro da água, em lugares pantanosos. A turfa cria um ambiente pobre em oxigênio e retém água. Com isso, o material orgânico pode ser preservado do ataque de bactérias.
A listagem de achados em Monte Verde é impressionante. Foram preservados artefatos de madeira, restos de plantas medicinais e pedaços de carne de mastodonte.
A presença de plantas semelhantes às que hoje são ainda usadas por nativos chilenos com propósitos medicinais indica que os monteverdianos tinham uma cultura razoavelmente sofisticada.
Três pegadas humanas feitas em argila também foram achadas. Dillehay especula que teriam sido feitas quando alguém pisou no barro que tinha sido trazido para proteger as fogueiras, duas das quais foram achadas (e também um estoque de lenha).
Também graças à turfa foi possível livrar da destruição uma estrutura que lembra uma grande tenda, sustentada por toras e coberta por peles de animais. Análise microscópica do chão revelou que ele estava coberto por peles de animais -certamente uma necessidade nesse sítio da era glacial.
Patrulhado pelos conservadores "pró-Clóvis", Dillehay exagerou na resposta. São mais de mil páginas descrevendo o sítio -o segundo volume deverá ser publicado em breve -, além dos artigos científicos publicados ao longo dos anos. Por exemplo, um artigo publicado na revista especializada "Journal of Field Archaeology" mostrou a existência de restos de sangue em ferramentas de pedra.
Os achados de Monte Verde estão revelando não só a idade, mas principalmente o modo de vida dos antigos habitantes das Américas. Vários pontos da habitação mostram atividades diferentes, como a carneação de animais ou o preparo da comida ou fabricação de ferramentas.
"A discussão sobre a idade tem distraído atenção do fato principal, que é a ocupação propriamente dita", como disse outra pesquisadora da área, Anna Roosevelt, professora de antropologia da Universidade de Illinois, durante palestra no Brasil no ano passado.

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