São Paulo, quarta-feira, 18 de junho de 1997
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Artista tece suas tramas

STELLA TEIXEIRA DE BARROS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Capixaba radicado no Rio de Janeiro, Cabelo, 29 anos, insere-se como o convidado brasileiro mais jovem na Documenta.
Complementa, com obras de Lygia Clark, Hélio Oiticica e Tunga, uma linhagem de quatro artistas que desenvolveram a sensibilidade sensorial do corpo como elemento básico constitutivo de suas experimentações.
Cabelo apresentará por três vezes em Kassel a performance que idealizou para o projeto "Antarctica Artes com a Folha", realizado de setembro a outubro do ano passado, e repetida no início deste mês no evento "Babel", no futuro Sesc Pinheiros.
Denominada "Cefalópode Heptópode", ou seja, algo que pode ser traduzido como "polvo (mutilado) de sete pés", a performance reúne sete pessoas sentadas em cadeiras colocadas a certa distância de uma pequena mesa redonda, sobre a qual se encontra um aquário com peixes.
Com as cabeças encapsuladas por capuzes sem abertura ocular, esses personagens, corpos atuantes que permanecem estáticos enquanto se desenrola a performance, têm longos fios dentais -"fios mentais", adverte o artista- que saem dos capuzes na altura dos olhos, ao término dos quais estão amarrados pequenos anzóis com chumbo e isca.
Cabelo estende esses fios até o aquário e também até os dois copos com água colocados no chão. Derrama óleo e álcool no aquário de peixes e ateia fogo.
Lentamente, o fogo se consome, no quadro votivo de um ritual que busca -nas variações dos sentidos e da razão- uma representação inteligível do universo.
É uma metáfora que procura, na pluralidade de matizes das diferentes experiências dos sentidos, combinadas com os elementos primordiais -a água, o ar, a terra e o fogo-, expressar o contraponto de uma alternativa do próprio estar no mundo, tentando responder, de alguma maneira, às provocações e desafios que envolvem o ser humano.
Com sete pernas, o grande corpo do polvo se configura de antemão truncado, como as possibilidades sempre limitadas do conhecimento humano.
Entre os corpos dos sete participantes interligam-se os fios, feixes de funções sensoriais em que as imagens acontecem como passagem, como metáforas da percepção e da memória, num entrelaçamento reflexivo de sentidos e movimento.
O aquário é o centro de irradiação da vida, e os copos com água são alguns de seus prolongamentos fragmentados. A busca do conhecimento tece uma trama de ramificações que imergem no mundo, no esforço de "pescar" com anzóis o despertar da consciência.
O olhar é o espelho da mente, mas, oculto sob os capuzes, induz a uma oscilação entre o rebaixamento da visualidade e a percepção aguçada dos outros sentidos.
O ziguezagueante itinerário dos fios que se cruzam, e forçosamente se interpenetram, açula a trajetória dos olhares que não vêem e das mentes que sentem e ouvem.
Num jogo multiplicador da imaginação, esses fios estabelecem uma movimentação ávida em alcançar um conhecimento harmonioso. Avisam-nos também que confiar somente no olhar pode ser perigoso, pois a hipervisualidade com que somos bombardeados constantemente e cada vez mais é uma maneira de atrofiar o olhar e obscurecer a perceptibilidade.
Bachelard notou que a hegemonia da visão, "a menos sensual das sensações", pode ser uma cilada para o conhecimento e um empecilho à criação poética, pois se atém à forma e à racionalidade, quebrando a aderência do mundo.
A performance de Cabelo nos indica que, ao incorporar às construções da mente as quatro raízes do universo, a mente é contaminada pelo fio da trama sensorial, reconhecendo, no instante efêmero do ritual, o sortilégio da sedução poética, que imerge no fluxo de trocas de experiências de linguagens, na fluidez do rio de águas sempre renovadas.

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