São Paulo, quarta-feira, 18 de junho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ed Mort não é paródia e trata os personagens com proximidade

ALAIN FRESNOT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Caro Marcelo, há muito eu esperava ler sua crítica sobre o "Ed". Admiro seu trabalho e, em geral, concordo com suas observações, de maneira que, apesar de não estar de acordo com sua avaliação do "Ed", é um prazer fazer, a partir de sua crítica, algumas reflexões e observações sobre o filme e o seu texto.
Escrevo sem a pretensão de gerar polêmica ou qualquer outra forma de promoção do filme. Faz falta um efetivo diálogo entre o realizador e o crítico, desvinculados das respectivas funções e injunções profissionais.
Se lhe escrevo, repito, é por absoluto respeito ao seu trabalho e à generosidade e acuidade intelectual que percebo nos seus escritos, o que me leva às reflexões que tomo a liberdade de submeter-lhe.
Inácio "descobriu" que o filme é tratado em planos fechados!!! Ele aponta um tratamento diferenciado dado ao personagem do Ed em relação ao da Cibele. Atribuo a aceitação acrítica da observação do Inácio a algo de que nós, cineastas, somos muitas vezes acusados: corporativismo.
Gosto de trabalhar com "storyboard". Consequentemente, o filme é todo desenhado previamente -esse material está à sua disposição, como à dele também, para verificar que o tratamento dado ao Ed e à Cibele é rigorosamente igual. Daí inferir que a proximidade é um artifício para não se distanciar criticamente do personagem é uma ilação possível, mas equivocada.
O filme tem a proposta de tratar e trata todos os personagens com proximidade. Isso se deve a uma tentativa de apuro na decupagem, de manter a atenção do público e gerar uma proximidade e possibilidade de identificação como o Ed, com o delegado corrupto e gay, com o travesti etc.
A proximidade se deve também à minha formação de montador, e já estava no meu filme anterior, "Lua Cheia", que lhe recomendo, o que, acredito, ajudará a alterar sua primeira leitura do "Ed", iluminando-a um pouco mais.
Seu texto aponta inicialmente o filme como sendo uma tentativa de paródia dos clássicos americanos -nada mais distante do que o que me propus. Minha pretensão foi justamente não dar nenhuma importância a isso. Pessoalmente, não vejo nenhum interesse nesse tipo de exercício.
Você pode apontar a distância existente entre o que se quer e o que se faz, mas em sua análise, por falta de conhecimento mais preciso sobre produção, faz generalizações equivocadas. São "preparadas" para alcançar o resultado do raciocínio previsto. Explico:
1 - O "Beijo" do Walter Rogério não tem nada a ver com o renascimento do cinema brasileiro, é um filme que nasceu no apagar das luzes da Embrafilme, em 88, contemporâneo de "Lua Cheia".
2 - "Ed Mort" nasceu em 1991, quando comprei os direitos do personagem, no mais profundo dos "poços" em que o cinema brasileiro se meteu. Consequentemente, essa segunda dentição do cinema "pós-Collor" que você "parece" querer definir é algo exclusivamente aparente.
O "Ed Mort" parece uma grande produção, mas isso graças ao esforço e abnegação da equipe. Se o filme tem grande elenco, é graças à compreensão que atores e atrizes têm da importância da existência do cinema brasileiro e a algo que eu chamaria de "efeito Camuratti": a vontade que várias pessoas tiveram, como o Chico Buarque, de saudar e marcar posição favorável à existência de nosso trabalho no Brasil.
Quanto ao lançamento, esse existe, extra "Unibanco", porque conseguimos, via Lei Mendonça, recursos para dar visibilidade ao filme.
Você põe num mesmo patamar filmes com "pedigree" completamente diferentes, unindo "fenômenos" absolutamente desiguais: um filme de US$ 3 milhões de produção e distribuição de uma "major" a um filme feito inicialmente com recursos de um concurso público, que recebeu US$ 260 mil para começar e tem a Riofilme como aliada!!!
Ao iniciar a análise a partir de um pressuposto equivocado de que o filme nasce como um filme comercial, junto com a idéia de que o filme se propõe paródia, seguem-se desdobramentos que não fazem honra à sua "criticografia". Destaco mais uma discordância, e não menor:
Não me parece que o filme seja anti-homossexual. O Ed é, como representante do "machismo" reinante, mas o filme tem um olhar extremamente carinhoso para a "Dayse" e para o delegado Mariano. Se o autor não acredita na humanidade de seus personagens, como pode pretender que o público acredite? Acho que esse "carinho" pelos personagens é que passou a impressão de que "estamos em família". O que pareceu um oportunismo, na verdade é a tentativa de "amoralismo".
Outro ponto em que, me parece, você procurou "pêlo em ovo" é o do avião: na história em quadrinhos o Ed caía no braço do Cristo Redentor, no Rio, dizendo: "Milagre..."
Evidentemente, em São Paulo, só tínhamos o Borba Gato, que não funcionaria. A solução encontrada não me parece a pior, pois o filme se dá outras liberdades correspondentes: crianças viram salsichas.
Muitas pessoas têm apontado a acidez da crítica implícita na personagem da apresentadora infantil e na corrupção do delegado uma crueldade e ausência de concessões que correspondem à imagem que faço do filme. Não é uma questão de saber se o brasileiro é trouxa ou não, esse tipo de generalização é sempre falso.
O Ed, ao perder a confiança em Cibele, tem a capacidade, a coragem e a iniciativa de traçar um plano de ação ou reação, como queria, e levá-lo a cabo. Infelizmente, seu poder é menor do que o dos outros, e ele tem o bom senso de saber seu limite.
Por último, sua crítica é toda reflexiva sobre o cinema de Hollywood, sendo que a citação de "Casablanca" está no final do filme como uma simples "gag" a mais, mas com a pretensão implícita de dizer: "trouxemos e resolvemos o filme até aqui, até o fim, sem precisarmos de 'paródia', mas agora pode".
Depois dessa última "provocação", renovo minha simpatia pelo seu trabalho. Penso que errar é humano, tanto para o cineasta como para o crítico.
Depois de quase 30 anos militando no cinema brasileiro, já acompanhei muitos e sei que a trajetória do crítico corresponde mais ou menos a três fases. A primeira em que, sendo um "amante" da sétima arte, ele se julga portador das "soluções" e vê o cinema brasileiro com incômodo. Como incomodava aos adolescentes aquele índio mendigo no ponto de ônibus em Brasília.
Na segunda fase, pela qual nem todos passam, o crítico inteligente começa a desconfiar que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha sua vã filosofia, que o cinema brasileiro é feito no Brasil, e começa a se inteirar das questões estruturais que determinam as nossas criações.
Alguns se filiam, esteticamente, a essa ou aquela corrente de realização, como Jairo Ferreira, Rubens Biáfora ou Jean-Claude Bernardet, para citar exemplos bem variados.
O crítico é também objeto de "corte" permanente de distribuidores e televisores. Há que apontar também o quanto o crítico trabalha "filando" a crítica alheia.
É absolutamente espantosa a diferença entre a crítica do Rio e a de São Paulo. No Rio, a quase totalidade considerou o filme entre bom e ótimo, aqui em São Paulo, de ruim a regular.
A derradeira fase é quando o crítico é mudado de editoria, passando para Economia, ou é congelado a longo prazo, fazendo resenhas. Isso pode ser demais para certos "egos", principalmente quando houve uma tentativa anterior de ser cineasta. A tendência, nesses casos, é a mesma dos adolescentes de Brasília, não importa se é índio ou mendigo, mexeu, taca fogo...
Infelizmente, críticos do nível de Paulo Emílio Salles Gomes não surgem a toda hora. Ele analisava um filme e respondia a pergunta básica à qual todo crítico deve responder: é pra ver ou não é pra ver o filme? Sempre era pra ver.
Caro Marcelo, espero ter a oportunidade de fazer outros filmes para sua atenção, que em geral é mais do que uma crítica, é uma análise cultural. Poucas pessoas têm a coragem de se expor e assumir suas opiniões e posições.
Sem "puxação", não é à toa a importância e espaço que você ocupa na Folha, mas permita-me citar mais uma vez Paulo Emílio, que dizia, a respeito do Glauber Rocha, quando este errava numa previsão: "O dever do profeta não é acertar, é profetizar." Eu diria: o dever do analista é analisar, não acertar. Do amigo Alain Fresnot.

Texto Anterior: O melhor dos programas de busca
Próximo Texto: Filme de Alain Fresnot hesita entre o tom de paródia e o realismo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.