São Paulo, quarta-feira, 18 de junho de 1997![]() |
![]() |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
Filme de Alain Fresnot hesita entre o tom de paródia e o realismo
MARCELO COELHO
Fico, assim, muito feliz com a carta de Alain Fresnot comentando meu artigo sobre o filme dele, "Ed Mort". A carta é de uma elegância e de uma simpatia enormes, afastando para longe o espírito de "polêmica" (leia-se xingamento) que aparece em manifestações desse tipo. Trato de responder e, infelizmente, de teimar um pouco mais. 1) A questão da periodização. Errei, porque tinha identificado "Ed Mort" a uma fase mais comercial do cinema pós-Collor, e o filme de Fresnot nasceu em 1991. Não há como contestar o fato. Tive apenas a impressão de que os filmes brasileiros atualmente em cartaz são mais comerciais do que os de um ou dois anos atrás. O que era uma "vertente" transformou-se em "fase" por ilusão de ótica. 2) Fresnot me acusou de "corporativismo" por ter citado Inácio Araújo. Mas se eu não citasse, seria plágio. Inácio Araújo notou a presença de muitos close-ups no filme, coisa que tentei interpretar. 3) Fresnot diz que há tantos planos fechados de Ed Mort quanto de Cibele, e isso desmente o que Inácio Araújo disse. Humanização 4) Nesse ponto, o próprio Fresnot me ajuda. Ele diz que a proximidade da câmera pretende, entre outras coisas, gerar uma "identificação" com os personagens. 5) Mas Fresnot, estranhamente, insiste no aspecto "humano" dos personagens. Atribui a Ed Mort uma decisão moral, e "a coragem de traçar um plano de ação". O delegado Mariano, vivido por Otávio Augusto, seria gay para contrabalançar o seu aspecto sanguinário, de modo a constituir-se como personagem mais real. 6) Posso estar totalmente errado, mas não me parece haver muito realismo no filme. Será que Fresnot não tomou para si as críticas feitas a "O que É Isso, Companheiro?". Ali se mostra um torturador com crise de consciência. Os defensores do filme disseram que isso foi uma maneira de dar "humanidade", isto é, "realismo dramático" ao personagem. Foi, a meu ver, um jeito errado de "humanizar", mas em todo caso o filme de Bruno Barreto é realista. "Ed Mort" não é. 7) Segundo Fresnot, "Ed Mort" não é uma paródia dos filmes de Hollywood. Pode ser que não, enquanto filme. Mas ou eu sou cego, ou o personagem Ed Mort é uma paródia dos detetives de filme "noir" norte-americano. Identificação Talvez aquilo que eu critiquei no filme seja exatamente o que Fresnot declara ao defender-se. Ele não quer fazer paródia, mas parte de um material em si paródico; é aí que o filme hesita. Enquanto o texto mostra a tolice de Ed Mort, o filme quer que nos identifiquemos com o personagem... Seria muito diferente se o filme nos mostrasse Ed Mort como uma espécie de Dom Quixote, isto é, alguém que se julga dentro de um filme policial dos anos 40 mas na verdade luta contra a óbvia e feia realidade paulistana. Só que, pelo menos quanto a isso, o filme não nos ilude; Ed Mort está no mesmo plano dos demais personagens, todos transpostos a um mundo simultaneamente desenxabido e fabuloso, frustrante e frustrado. Brasilidade Desse modo, aliás, os créditos do filme prometem alguma coisa que não acontece. Os nomes da equipe, dos atores etc. aparecem grafados de modo errado, como se um semi-analfabeto estivesse, por acaso, fazendo cinema. O que isto sugere? Uma espécie de incompetência fictícia, uma "brasilidade" no malfeito. A brincadeira seria sustentável se o personagem Ed Mort falasse errado, correspondesse a algum estereótipo popular; mas o filme hesita, por exemplo, no sotaque do personagem. É que Paulo Betti tem de ser, simultaneamente, um brasileiro típico (realismo, mas sem sotaque) e um detetive de cartum (paródia, mas sem realismo). Com isso, os erros e besteiras do personagem ficam num meio-termo: ele é trouxa enquanto brasileiro, é trouxa enquanto anti-herói paródico, mas tem de ser ao mesmo tempo real e irreal, ou seja, nem tão brasileiro, nem tão anti-herói paródico quanto deveria. É assim que, a meu ver, o filme se equivoca, sem ser antipático. Faz uma meia crítica ao Brasil e uma meia crítica ao heroísmo policial americano. Pode ser que Alain Fresnot não estivesse pensando no cinema de Hollywood quando fez o filme, mas Ed Mort é claramente um detetive hollywoodiano fora de seu contexto. Só que fazer isso seria cruel demais com figura tão simpática: o contexto brasileiro, então, é aludido mas dissolvido no filme, para que Ed Mort não se sinta tão fora de casa; o país se torna tão irreal quanto ele e, ao mesmo tempo, reconhecível. Esse o sentido inconsciente, a meu ver, dos encontros de Ed Mort com personagens famosos: o "tudo em família" que ocorre ao reconhecermos Chico Buarque ou Zé do Caixão na tela está a nos dizer: o Brasil não dói tanto assim, nem Ed Mort sofre por não ser americano; não sendo um Dom Quixote, seu desajuste é, por assim dizer, "ajustado" a uma realidade que nos faz rir, mas que no fundo não nos incomoda, porque sabemos tratá-la com carinho e proximidade, até porque não é tão real assim. Surrealismo Fresnot não retratou um país surrealista, o que, em cinema, seria mais crítico e menos indulgente. Dosou o realismo para não ser surrealista, e distribuiu o surrealismo para ser paródico ao mesmo tempo com relação a Bogart e ao delegado da esquina. Tornou o pesadelo noir numa comédia brasileira, mas justamente a paródia do roteiro desmente o anti-surrealismo da ambientação. O esquemático, o quase esquelético das falas, das atitudes, procura ganhar carne filmado de perto. Temos a impressão de que tudo foi recortado em cartolina para mover-se num cenário realista. O humor de Luiz Fernando Verissimo tem mesmo essa secura meio tímida, meio "sem graça", se posso dizer assim. No filme, a sem-gracice se resolve em carne e osso, numa espécie de calor de estúdio; quanto mais realista, mais falsa a cena, porque tem de ser engraçada ao mesmo tempo, e assim a paródia entra em curto-circuito, sem saber se goza de Dashiell Hammet ou do Brasil; talvez prefira gostar de todo mundo. Mas é por isso que eu não gostei do filme. Só posso pedir desculpas a Alain Fresnot, depois de uma carta tão gentil, pela minha cabeça-dura. Mas é um prazer quando, sem "polêmica" e promoção mútua, dá para estender um pouco o debate e pensar mais sobre um filme. Texto Anterior: Ed Mort não é paródia e trata os personagens com proximidade Próximo Texto: HÉRCULES Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |