São Paulo, quinta-feira, 19 de junho de 1997
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Incursões desastrosas são retratadas com cuidado

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O guerrilheiro argentino Ernesto Che Guevara, executado em 1967, é o tango da vez. Finda o século, e o motoqueiro desalinhado que largou a carreira de médico na Argentina e comandou, junto com Fidel Castro, a Revolução Cubana, tem lugar de destaque no imaginário.
Mas o tempo se encarrega de esfriar os ânimos, propiciando releituras (biografias) equilibradas da lenda. Em "Che Guevara: A Vida em Vermelho", de Jorge Castañeda, descobre-se o fim melancólico daquele que tem seu rosto angelical estampado em pôsteres e camisetas.
Nos últimos anos de vida, ninguém o queria. Largou Cuba por incompatibilidade com os rumos da revolução. Foi rejeitado por guerrilheiros da Venezuela e Peru. Foi abandonado pelas falsas promessas de Kabila e pelo PC da Bolívia. Falou-se numa "maldição Guevara": Jânio Quadros renunciou uma semana depois de tê-lo condecorado.
O homem que ameaçou a estabilidade do "mundo livre" morreu desnutrido, com crises de asma e diarréia.
O interesse por Che é mítico. Ele era um homem que tinha tudo, mas, em troca de uma idéia, partiu para o sacrifício. Obstinado, materializou a bandeira da rebeldia; seguiu o ditado da juventude dos anos 60 "we want the world, and we want it now" (queremos o mundo, e queremos agora).
Che é a nostalgia de um mundo em combate; não viajava para "curtir o mundo numa boa", mas para visitar hospitais, trabalhar em leprosários e entender o continente "dilacerado pela desigualdade".
Por que tantas biografias recentemente? Simples. Leis nos EUA e Reino Unido garantem o acesso a arquivos antes secretos e fendas na antiga Cortina de Ferro contribuem para se recontar a tragédia de vítimas da Guerra Fria.
Castañeda, 44, professor universitário mexicano, foi um dos que teve acesso a tais documentos.
"A Vida Em Vermelho" não pertence ao time de "biografia de banca" -o autor não se atém apenas aos amores de Che, mas à construção do pensamento do revolucionário.
Descreve o cenário em que nasceu Ernesto, filho de uma rica família de esquerda. Força a barra ao destacar o espírito de liderança do garoto junto aos vizinhos: "Ernestinho mostrava uma facilidade notória para relacionar-se com gente alheia ao seu meio cultural e social".
Retrata um jovem "mochileiro", que prefere viajar a participar do processo político de uma Argentina em ebulição (Perón chegando ao poder).
Aponta a asma como fator da inquietude: a descarga de adrenalina em um combate amaina os efeitos da doença de Che.
Guevara era um homem do mundo. O encontro casual, no México, com os irmãos Raúl e Fidel Castro, orientou seu inconformismo.
Partiu na lancha que iniciou a Revolução Cubana. Liderou um destacamento miliciano. Tomou a cidade mais estratégica da ilha e entrou em Havana como o segundo comandante da Revolução, apesar de estrangeiro e de nunca ter pisado na capital.
O livro é cuidadoso ao analisar a participação de Che na construção do socialismo, em Cuba. Mas o autor esbarra num tabu: a participação de Che no julgamento e fuzilamento dos ex-partidários de Batista. Guevara foi o homem indicado por Fidel para comandar as execuções. "São execuções justas, mas desprovidas do respeito que impõe um processo", escreveu Castañeda.
Há um Guevara não tão bonzinho a ponto de ser canonizado. Conhece-se a frase "não perder a ternura jamais". Mas poucos conhecem um de seus últimos ensaios, em que dizia: "Um povo sem ódio não pode triunfar sobre um inimigo brutal".
O autor é cuidadoso ao destacar as desastrosas incursões de Guevara pelo Congo e Bolívia. Mas não se esforça em mostrar a sombra do mito.

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