São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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Os dilemas do prisioneiro do Alvorada

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A solidão do presidente da República em Brasília, que confessou o seu sentimento de prisioneiro em entrevista reproduzida em "O Globo" (14/06), deve ter provocado em muitos uma certa compaixão e muita perplexidade.
Tais sentimentos provavelmente dissiparam-se quando na 2ª feira passada resolveu um de seus dilemas de prisioneiro recebendo, na calada da noite, o ex-prefeito Paulo Maluf, apenas para pedir-lhe de graça, como é de costume entre cavalheiro, que o ajudasse a votar a reforma administrativa!
S. Exa. tentou passar a idéia de que se tratava de mais um ato corriqueiro de suas tarefas de estadista, naturalmente sempre "por gosto de ajudar o Brasil a ir para a frente". Esse ato foi mal interpretado pelos seus correligionários do PSDB - alguns dos quais, na manhã seguinte, mal disfarçavam o seu desagrado diante da perspectiva de perder o poder em São Paulo, apenas para manter o seu presidente de honra. A luta entre a honra e o poder não se constitui, porém, no verdadeiro dilema do candidato e presidente virtual do Arenão, razão pela qual as manifestações de seus amigos não o fizeram perder a serenidade e a cordialidade ao receber os cumprimentos pela passagem de seu sexagésimo-sexto aniversário.
Terminado o tão comentado inferno zodiacal, o presidente, como bom geminiano, tende a sublimar as suas características de dupla personalidade (a que era e a que é) com sonhos fantásticos sobre o seu próprio futuro político e do país, confundidos nas nuvens do pôr-de-sol de Brasília com o Eldorado de nossos primeiros descobridores. Quando baixa à terra, isto é, ao pragmatismo do Palácio do Planalto, descobre sempre que só tem uma perna, a direita, para manter-se no caminho do poder majoritário e esmagador que exerce sobre os pobres e ricos deste país. Daí a necessidade que sentirá cada vez mais de usar uma linguagem mediática em que as palavras ditas mistificam a realidade do exercício do poder solitário sem território e sem povo (só súditos e cortesãos) que parece ser o sonho-pesadelo que assola as suas noites de prisioneiro no Alvorada.
Continuará a vangloriar-se de que seu governo eliminou o que chama de "corrupção sistêmica", justo no momento em que paira sobre seu primeiro escalão a grave suspeita de corrupção ativa no voto da emenda de sua própria reeleição. Repetirá mais uma vez que "A questão agrária é um problema real e sério e portanto não deve ser instrumento de luta política", no momento mesmo em que "instrumentaliza" a sua política agrária através de uma MP recém-publicada que contém fortes incentivos ao genocídio (privado e estatal) de milhares de sem-terra.
Tentará talvez alcançar o duplo objetivo de eliminar o MST e contribuir para a diminuição do número de pobres sobre a terra, permitindo que vão direto para uma vida melhor no céu dos infelizes. Que esta não seja uma idéia aprovada pela Igreja Católica não parece incomodar o primeiro mandatário - talvez porque sua conversão recente não lhe permite ainda penetrar nos mistérios da caridade cristã. Isto não lhe tira porém a fé num "admirável mundo novo", no qual -segundo "estudos" que diz possuir- a pobreza, estará eliminada "até 2010".
Desse mundo não faz parte, certamente, a saúde dos brasileiros apesar das estatísticas otimistas, apresentadas na propaganda oficial. O TCU deu as cifras verdadeiras do gasto em saúde em 1995 e 1996, mas S. Exa. prefere fazer valer previsões não executadas do orçamento de 1997 e compará-las com os gastos per capita de seus antecessores, medidos em dólares correntes, violentamente desvalorizados sobretudo depois da reforma monetária.
Um exame mais cuidadoso dos precários dados com gastos de saúde revelará os seguintes fatos: na década de 80 ocorreu um pico de gasto em 1987 (governo Sarney), que começa a diminuir com a aceleração inflacionária no fim do período; no governo Collor, os gastos despencaram mais de 40% em termos reais. Finalmente, o atual governo gastou por ano menos que o de Itamar, já que não se cumpriram os orçamentos de 1995-96, motivando inúmeras brigas da equipe econômica com o ministro Jatene que acabou pedindo demissão. Ironicamente, foi Jatene que lutou e conseguiu a Contribuição sobre Movimentações Financeiras, cuja promessa de destinação integral para a saúde não aconteceu, dada a alocação de parte dos recursos arrecadados ao chamado Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), que deverá ser votado agora em julho. Diante da perspectiva de aperto fiscal é provável que as práticas restritivas do Tesouro levem novamente a uma diminuição do desembolso de caixa para a saúde, em relação ao valor do orçamento de 1997, desmentindo, uma vez mais, as previsões otimistas do chefe do Executivo.
Aliás, as novelas do Tesouro em suas aplicações de caixa e corte de gastos sociais são incontáveis, mas a última foi verdadeiramente antológica. Uma portaria do Ministério da Fazenda anulou as despesas já realizadas com os 28,86% de aumento do funcionalismo, autorizadas pelo ministro da Administração por imperativo constitucional, objeto que foram de decisão do Supremo Tribunal.
Compare-se a do Supremo Tribunal dos EUA, que obriga o presidente da República a dar explicações sobre supostas transgressões sexuais, com o poder do nosso Supremo que pode ser desrespeitado por qualquer burocrata de 3º escalão escudado no Poder Executivo. Em compensação um juiz de uma vara de província pode condenar, declaradamente contra as provas dos autos, Zé Rainha a 26 anos de prisão, em nome do "poder da propriedade privada", mudando a acusação no meio do julgamento.
Tudo isto traz a muita gente boa, pesadelos que, naturalmente, vão em sentido contrário aos sonhos do presidente. A continuarem as atuais "políticas sociais" de (des)emprego e das contra-reformas agrária, administrativa e de seguridade social, supostamente deveríamos aceitar um Estado mínimo mas "forte" que permita alcançar o extermínio da pobreza através de "políticas de segurança" máxima convergentes com algumas já em curso. Especial atenção deverá ser prestada a aposentados, doentes e funcionários públicos, além de milhões de jovens sem terra e sem teto que empanam o brilho da nossa civilização rural e urbana.
Pode-se ainda imaginar que, para confirmar seu "modelo" de projeção sobre o fim da pobreza, mantida a sacrossanta estabilidade da moeda e do câmbio, o Executivo resolva "flexibilizar os salários nominais", baixando consideravelmente o nível do salário mínimo. Dado que muitos pesquisadores tomam como "linha da pobreza" entre um quarto e meio salário mínimo, teríamos finalmente uma linha ideal abaixo da qual, como uma espécie de Equador imaginário, não mais haveria pecado nem dor porque simplesmente não haveria vida.
O autodenominado prisioneiro do Alvorada encontra-se finalmente ante o seu verdadeiro dilema. Fazer o sacrifício final de viver e governar até 2010 de onde se retiraria para a eternidade a contemplar sua obra: o extermínio da pobreza e um Brasil novo e reluzente de novos ricos. O Eldorado em negativo de nossos antepassados descobridores.
Haja energia e sanidade para que a população deste país rejeite a visão falsificada e autoritária de nossas elites dominantes e consiga fortalecer os movimentos sociais que afiançam a luta democrática contra a pobreza e o desemprego. Esta luta sem quartel é uma garantia política indispensável à melhoria das condições de existência e de cidadania de nosso povo.

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