São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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Falácias, diria o velho conselheiro

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Depois da cinzenta vitória sobre a Colômbia, Zagallo entrecortou um lamento: bem que ele queria um futebol ofensivo, alegre, diferenciado, mas tantas foram as críticas ao seu sistema defensivo que teve de recorrer à opacidade de um jogo controlado e convencional. Não disse tudo isso, mas estava escrito, palavra por palavra, na testa do Lobo.
Nananina, meu caro Zagallo. Essa não. Se estivesse tão empenhado em romper com o marasmo dos sistemas defensivos atuais, teria treinado com afinco e esmero uma marcação por pressão no campo adversário, estabelecido a linha de impedimento, avançando sua zaga e tudo o mais. Ou, no mínimo, abriria mão dos dois médios de contenção, que, se não contêm devidamente os ataques inimigos, contêm, isso sim, a fluidez de nossa saída de bola. Falácias, falácias, diria o velho conselheiro.
*
Antes de mais nada, é preciso deixar bem claro que vivemos um instante prodigioso da nossa história: poucas foram as épocas em que tivemos tantos talentos de nível internacional. Só faltam pequenos ajustes, mas vitais, para acertá-los em campo.
*
Era uma vez, há muitos e muitos anos, um jornalista, panfletário emérito, desses que não conseguem se controlar diante do cinismo dos poderosos. Todo santo dia, molhava sua pena -naquele tempo, usava-se ainda a pena- num pote de fel, e derramava suas diatribes -naquele tempo, eram diatribes- sobre a folha branca com a fúria dos justos.
Claro que o destempero sem provas, posto que estas nunca bastam aos olhos cegos da lei, acabava por levá-lo duas ou três noites às masmorras -eram tempos de masmorras, então -semana sim, semana não, por ordem de zeloso juiz. Enquanto isso, cresciam os desmandos dos poderosos.
Velho, cansado da luta inglória, já sem forças para resistir às noites cada vez mais longas no cárcere -sem contar as reprimendas da mulher, o desprezo das filhas e o abandono dos amigos-, mas ainda com a alma em fogo, nosso herói resolveu dar a tacada final: foi aos tipos -naquele tempo, havia tipos nas oficinas gráficas- e montou a gloriosa primeira página de seu pasquim. Manchete, em letras garrafais -naquele tempo, eram garrafais as manchetes: CANALHAS! E logo abaixo do pingo da exclamação escandia o rol de insultos: "Súcia de canalhas, pelintras, ladravazes, velhacos, safardanas, poltrões..." (traduzindo: canalhas, pilantras, ladrões, traidores, safados, covardes...) e mais uma centena de adjetivos desqualificativos. E ponto final.
À noite, enquanto ainda sorvia as últimas gotas da vingança do dia, o velho panfletário explicava à intrigada mulher a valia de ter publicado esse vitupério -chamava-se vitupério, nessa época-, sem dar nomes aos bois.
"Eu, eles e o leitor sabemos quem são. Até o juiz sabe quem são, mas esta noite não pode mandar me prender. Esta noite, minha velha, enquanto eles remoem as ofensas, durmo o sono dos justos." Virou-se de lado e, antes mesmo de completar o gesto, seus roncos já ecoavam como os trovões de Zeus.

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