São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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O século de Hobsbawm

JORGE HALPERÍN
DO "CLARÍN"

Eric Hobsbawm completa 80 anos de idade e continua se lembrando daquela tarde quente do verão de 1933, quando voltava da escola em Berlim com sua irmã, no dia em que Adolph Hitler assumia o poder. Está convencido de que aquela sociedade convulsionada tinha consciência de viver um momento catastrófico. Paradoxalmente, acredita que este final de século é muito mais violento do que aquela época em que era um jovem comunista de 16 anos na Alemanha do nazismo.
Não é difícil relacionar Hobsbawm, talvez o mais importante entre os historiadores vivos, com os grandes acontecimentos do século. Não tanto porque tenha tido grande intervenção nos episódios que conformam sua história do século 20, mas porque sempre entendeu que o compromisso ideológico -no seu caso, com o marxismo- não lhe impedia de reconstituir o passado a partir de rigorosa perspectiva histórica.
Este homem, a quem boa parte da vida acadêmica de todo o mundo -também, naturalmente, dos claustros argentinos- reconhece como referência iniludível para conhecer a história do mundo nos últimos dois séculos, é, aos 80 anos, um aposentado da Universidade de Londres, mas um ativo docente da New School of Social Research, uma universidade independente de Nova York especializada em ciências sociais. Também um permanente produtor de livros que expõem a problemática do século que termina, fazendo-o com uma clareza invejada pela maioria de seus colegas.
"Clarín" o entrevistou em sua casa de Hamstead, um tradicional bairro londrino habitado por uma burguesia judia e por intelectuais de sucesso. Hamstead é o bairro onde viveu Freud e onde residem estrelas do rock, como Sting, e figuras do mundo cultural, e tem a atriz Glenda Jackson como uma espécie de vereadora.
A casa que Hobsbawm divide com Marlene, sua segunda mulher -uma docente que transita pelos 50 anos-, é, como o resto, de estilo tradicional e tem uma arrumação sóbria, como tudo o que caracteriza este personagem alto e magro, que fala com a serenidade de um velho professor, move seus longos braços como um pássaro e não deixa de se surpreender com o fato de que em países como o Brasil tenha mais leitores do que em sua própria pátria.
Hobsbawm acaba de lançar na Inglaterra "On History" (Weidenfield & Nicolson, 305 págs., 20 libras), uma coletânea de seus artigos na imprensa e em publicações especializadas.
*
Pergunta - O senhor declarou que a geração atual está perdendo contato com o passado. Isto é um fenômeno novo?
Hobsbawm - Quis dizer que o modo de ser atual, a forma como funciona nossa economia e nossa cultura, é de um "presentismo" constante. Ao mesmo tempo, mudaram as formas tradicionais por meio das quais se vinculavam as gerações, entre as experiências dos pais, dos avós e dos mais jovens. Há menor continuidade da experiência. Ninguém consegue compreender a forma em que vive ou viveu o outro, nem os pais nem os filhos. Paradoxalmente, nos últimos anos se nota na Europa e na América do Norte uma sede manifesta pelo passado.
Pergunta - Como nos mitos construídos em torno dos anos 60...
Hobsbawm - Acredito que é mais do que uma moda e que não se dá somente em torno dos anos 60. É uma avidez por recuperar o passado. Desta forma, surgem espécies de museus vivos em antigos centros industriais que já não existem e onde as pessoas acorrem para ver como era uma fábrica do começo do século ou uma mina há 50 anos, porque já não existem mais. Na minha juventude, havia no Reino Unido 1 milhão de mineiros. Hoje, há mais professores universitários que mineiros.
Pergunta - O senhor fala de uma sede do passado. No entanto, temas como o Holocausto parecem ignorados por muitos jovens.
Hobsbawm - Bem, o que acontece é que um fenômeno como o Holocausto é incrível, inconcebível, até mesmo para a minha geração, que é a que o viveu. Mas, ao mesmo tempo, as pessoas estão conscientes deste divórcio do passado. É que o passado é uma dimensão de cada vida humana, de cada vida social. Sem passado, sem memória, não se pode viver. Daí vem, também, a moda de reconstruí-lo.
Pergunta - O senhor teve dúvidas quando se propôs a abarcar em um livro todo o século 20?
Hobsbawm - Sim, certamente. Ao começar este projeto -este livro é o último de uma série que iniciei há 30 anos-, não percebi a dimensão do que estava fazendo. Comecei escrevendo um livro sobre a época da Revolução Francesa e, depois, diante da boa receptividade que ele teve, os editores me pediram que escrevesse um novo tomo. Nesse momento, percebi que estava fazendo uma história de todo o século 19. Então, ao terminar essa série, nos anos 80, tinha chegado a abarcar até 1914. Muita gente me dizia que não era lógico terminar ali, que era necessário escrever algo sobre o que aconteceu depois. O problema de escrever a história do século 20 não é tanto a dificuldade de se resumir os acontecimentos de um século breve, há muita gente que o faz. O desafio está em outra parte: em repensar, em reinterpretar minha experiência pessoal, sobretudo pela idade que tenho e por ter vivido uma grande parte deste século.
Pergunta - Ou seja, o problema de fazer uma história na qual o senhor está incluído?
Hobsbawm - Claro, eu não sou um observador externo; sou, de certo modo, um participante. Como confrontar a experiência vivida, as minhas opiniões e o que, como historiador profissional, descobri por intermédio de minhas pesquisas e leituras? Além disso, há um outro problema mais dramático para alguém como eu, que esteve muito comprometido com o movimento de esquerda, com a causa da Revolução Russa.
Pergunta - Então, em que medida é autobiográfica sua história do século 20?
Hobsbawm - Não é autobiográfica. No entanto, há no livro um elemento autobiográfico e talvez seja mais fácil compreender a realidade dessa história por meio de minha experiência. Por exemplo, no livro cito um episódio que nunca poderei esquecer: essa tarde do verão de 1933, quando vivíamos em Berlim, e voltei da escola com minha irmãzinha. Era o dia em que Hitler assumia o poder na Alemanha. Quando escrevi no livro "em tal dia de 1933, Hitler assumiu...", esta frase está carregada de uma dimensão pessoal. Claro que o problema não é tanto a autobiografia, porque há enormes porções da história do século nas quais uma pessoa não teve nenhuma participação direta. No entanto, integram o ambiente no qual vivíamos todos.
Pergunta - Em 1933 o senhor era um jovem comunista?
Hobsbawm - Participava de uma associação comunista de estudantes secundaristas, mas não era organicamente um comunista.
Pergunta - Mas tinha idéias muito precisas sobre Hitler?
Hobsbawm - Todo mundo na Alemanha estava consciente do fenômeno Hitler. Ao viver nesse ambiente sumamente politizado, era quase impossível que alguém com uma certa inteligência não estivesse consciente de estar assistindo a um momento importantíssimo. Imagine, no ano de 1932 havia pelo menos três grandes eleições -uma presidencial e duas parlamentares-, de modo que ninguém podia fugir da realidade. Eram tempos de uma grande crise, e o sentimento de se viver um momento catastrófico era muito generalizado, não somente para alguns jovens intelectuais.
Pergunta - Havia choques com grupos de direita ou do governo? O clima nas ruas era de verdadeira agitação?
Hobsbawm - Nas ruas, sim. Mas muito menos do que atualmente. Hoje vivemos uma época muito mais violenta do que aquela. No entanto, todos estávamos plenamente conscientes.
Pergunta - Por que razão sua família se estabeleceu na Alemanha?
Hobsbawm - A explicação é complexa e simples ao mesmo tempo. Vivemos na Alemanha por coincidência. Meus avós, que eram provenientes da Rússia e da Polônia, já haviam vivido na Inglaterra até 1870. Portanto, meu pai era cidadão inglês. Em outro livro, "A Era do Império", expliquei como minha mãe, que tinha nascido em Viena, e meu pai, inglês, estavam no Egito, onde se conheceram antes de 1914.
Quando estourou a Primeira Guerra, era impossível voltar para a Inglaterra ou para a Áustria, de modo que passaram todo o tempo do conflito no Egito, onde nasci. Depois, minha mãe, que era muito nostálgica, insistiu em voltar para Viena. No final dos anos 20, o irmão de meu pai, que era casado com a irmã de minha mãe, se encarregou do destino de minha irmã e do meu. Nesse momento, meu tio trabalhava em um estúdio cinematográfico norte-americano instalado em Berlim. Em 1932, durante uma grande crise, se sancionou uma lei que obrigava as empresas de cinema a cobrir 75% dos postos de trabalho com alemães. Então, meu tio, como a maioria dos estrangeiros, ficou sem trabalho e, em 33, voltamos para a Inglaterra.
Pergunta - Quando o senhor tomou consciência dos mecanismos mais perversos do regime nazista?
Hobsbawm - Desde o princípio. Para os intelectuais, ficou muito claro desde o começo, sobretudo com a queima de livros. Sabia-se que era um regime antiintelectual e anticultural. Ao mesmo tempo, os campos de concentração já existiam desde o começo. Claro que naquela época não estavam tão dirigidos contra os judeus, mas sim contra os opositores, os comunistas, os socialistas e outros. Obviamente, ainda não eram campos de extermínio, mas todos conheciam pessoas que tinham passado um tempo neles.
Pergunta - No entrelaçamento que descrevemos entre sua vida e a história do século, o senhor não sente que sofreu várias derrotas: como judeu, como marxista e como homem inspirado no Iluminismo?
Hobsbawm - Bem, é clara a derrota do projeto de realizar o socialismo à maneira soviética. Mas era já perceptível há 40 anos. Já então, como um jovem intelectual, me parecia evidente que não havia nenhum comunista na União Soviética. Havia, sim, gente que trabalhava, vivia e amava sob um regime comunista, o que é diferente.
Pergunta - Digamos que não se assemelhava à sua utopia...
Hobsbawm - Isto era claro, mas também começava a se perceber que algo não funcionava. Depois, começou-se a se tomar consciência das dimensões, não somente do terror, mas do custo humano imposto à União Soviética pela revolução, pela guerra civil, pela guerra. Já se dizia, naquela época, que o custo era muito alto. Mas, quanto é o muito? Há limites. Por exemplo, sem o assassinato de milhões de russos em mãos dos alemães, teria sido possível ganhar a Segunda Guerra? Não se pode responder à pergunta, mas não há dúvidas de que em outros países socialistas, com exceção da China, os sacrifícios foram menores.
Pergunta - O senhor já era um professor de história quando se confrontou com semelhantes balanços?
Hobsbawm - Sim. Nesse momento existia a necessidade de se fazer uma distinção entre o grande ideal comunista, a função dos comunistas nos países capitalistas, e o que se chamou de socialismo real. Quanto ao marxismo, creio que como forma de interpretar o mundo ele continua enormemente vigente. Marx dizia que "é necessário transformar o mundo". Mas, hoje, sabemos que transformar o mundo é algo muito mais complexo do que o que ele imaginava. Quanto aos judeus, eu nunca tive uma grande consciência de ser judeu. Desde menino, mamãe me dizia: "Nós não temos nenhuma religião, estamos emancipados. Mas nunca faça algo que dê a impressão de que você não quer ser judeu".
Pergunta - O que parece evidente é que, para um homem do Iluminismo, o Holocausto foi uma derrota.
Hobsbawm - Parece-me que a derrota do Iluminismo é algo muito mais recente. Porque, ainda que seja correto que o nazismo e o fascismo eram contra as idéias do Iluminismo, eles foram derrotados. De certa forma, eu acredito que todo o século 20 é um retorno à aceitação universal de todos os valores do Iluminismo. É um século de uma rápida barbarização, mas me parece que, até o momento, o Iluminismo não foi derrotado. Por exemplo, nos últimos 30 anos houve uma forte resistência ao avanço da tortura. No Ocidente, a tortura chegou a seu ponto máximo entre os anos 60 e 70 -não somente na Argentina, Brasil e Chile. No entanto, desde então, desde a presidência de Jimmy Carter até agora, as pessoas estão muito mais conscientes da gravidade do tema. Digamos, de uma forma geral, que, ainda que o mundo continue sendo bárbaro, é muito menos bárbaro do que era, por exemplo, em 1975. Nesse sentido, de uma maneira modesta, não sou tão pessimista.
Pergunta - No entanto, há um conjunto de valores em crise e a própria decomposição do socialismo deixou um campo aberto à corrupção e ao crime organizado.
Hobsbawm - O que sobrevive do socialismo real são precisamente os valores do Iluminismo, da emancipação geral. E me parece que esses valores foram a base de todo o progresso humano: um exemplo disso é a propagação da democracia, ou seja, da idéia de que todos os seres humanos devem ser tratados da mesma maneira, de que há valores e critérios aplicáveis a todos. É certo que há ainda ataques a valores do Iluminismo em países como a Índia, onde as viúvas, depois da morte de seus maridos, são queimadas.
Os valores do Iluminismo nos fazem ver isto como algo absolutamente bárbaro, mas há estudiosos que dizem que é necessário compreendê-lo no contexto dessa cultura. No entanto, ainda que compreenda esses argumentos, creio que, sem a aplicação de certos valores absolutos que dizem "é necessário tratar as mulheres como os homens e os negros como os brancos", não há possibilidade de progresso.
Pergunta - Neste século, tivemos um terror de Estado com um aparelho político capaz de produzir genocídios e operações terríveis sobre a sociedade. E, agora, temos um Estado que parece se tornar quase ausente em uma série de áreas sociais que eram de sua competência. O que significa esse dramático pêndulo?
Hobsbawm - O que aconteceu é que, nos últimos dois séculos, houve uma tendência ao aumento dos poderes, das funções e das ambições do Estado, incremento que não tem nada a ver com a ideologia. Essa tendência chegou a seu ponto culminante nas duas décadas que se sucederam à Segunda Guerra, e era igual nos Estados Unidos, na Europa Ocidental e na Rússia comunista, ainda que variasse de acordo com a ideologia de cada governo. Mas, nos últimos 20 anos, se produziu a tendência contrária. É um fenômeno que ainda não pode ser compreendido muito bem. Por exemplo, o Estado perdeu certo controle sobre seu território. Em todo o século 19, com muito poucas exceções, havia uma enorme tendência a concentrar o controle das armas nas entidade públicas. Atualmente, há minorias que têm a possibilidade de operar com armas de grande porte. É impossível estabelecer a paz territorial que quase todos os países acreditavam ter assegurado há 50 anos. O Estado também está perdendo o controle sobre a economia.
Pergunta - O senhor não vê, por trás do fenômeno, o crescimento da sociedade civil?
Hobsbawm - Creio que há muita retórica vazia sobre a sociedade civil. Ela existe em relação a um Estado que funcione bem. Sem isso, a sociedade civil não existe. É a desordem. Pode-se falar de sociedade civil na Rússia pós-comunista, onde não há Estado, onde não há uma verdadeira ordem pública?

Continua à pág. 5-9

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