São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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O Século de Hobsbawm

JORGE HALPERÍN

Parece muito estranho que alguém que acredite no Alcorão possa ser, ao mesmo tempo, um engenheiro químico

Continuação da pág. 5-8

Pergunta - É um processo parecido ao da feudalização.
Hobsbawm - É possível, mas talvez uma feudalização fora dos limites dos Estados. Os grandes senhores feudais do mundo atual são as corporações econômicas. Vivemos um momento muito particular: o Estado continua sendo importante, indispensável...
Pergunta - Dirige exércitos...
Hobsbawm - Mais que isto. Dirige também a distribuição nacional da renda. E não somente o Estado o faz. Nos últimos 20 anos, a conversão de regiões ricas em regiões pobres se tornou uma das maiores funções da União Européia. Mas, ao mesmo tempo, existem outros tipos de poderes, como as transnacionais. Ambos têm que coexistir. Não é possível dizer: "O Estado já foi derrotado".
Pergunta - Quais são as heranças mais importantes dos séculos que o senhor trabalhou?
Hobsbawm - Bem, eu sou um pouco sentimental no que toca o século 19, porque me parece que foi uma época em que se podia acreditar tanto no progresso no sentido material como no sentido moral. Ou seja, cada vez mais liberdade política, mais educação para todos etc. As grandes heranças do século 19 foram duas: a criação da sociedade burguesa material, mas também institucional, política, e a crença no progresso permanente. Para alguns, os liberais burgueses, esse progresso deveria ser gradual, sem grandes sobressaltos, enquanto para outros, os socialistas e os marxistas, a chegada do capitalismo não alterava os valores tradicionais.
Pergunta - E o que deixa o século 20?
Hobsbawm - O grande legado foi o extraordinário progresso material e tecno-científico. Claro que este progresso tremendo deixa sequelas materiais e morais para o próximo século -por exemplo, os enormes problemas do meio ambiente. Mas houve uma transformação material do mundo e uma notável melhoria, não somente na possibilidade de vida dos seres humanos em uma grande parte do mundo, mas também no que toca a uma melhor qualidade de vida. Vivemos de uma forma mais saudável, estamos mais fortes, menos doentes que antes. Esta é uma herança absolutamente importante. Por outro lado, as heranças negativas são enormes. É difícil juntar estas duas coisas historicamente, sobretudo para alguém tão velho como eu. Para nós, as catástrofes deste século trágico foram muito impressionantes em nossa vida. E é claro que a última destas grandes catástrofes foi o colapso do socialismo real. Foi uma catástrofe moral e material da mesma dimensão das duas guerras mundiais em suas consequências até o momento. E não sei se não foi ainda mais grave.
Pergunta - Por quê?
Hobsbawm - Bem, a situação da imensa região localizada entre o Adriático e o Pacífico ainda não foi resolvida, ao contrário. Estamos muito mais atrasados do que há dez anos. Parece-me que talvez outra herança importante seja o deslocamento geográfico do centro do mundo. Anteriormente, ele estava na Europa ou às margens do Atlântico. Atualmente, está mais na Ásia e na América. Isso, no entanto, ainda não pode ser julgado. Como também é difícil julgar e analisar a herança que deixa o auge e o declínio do imperialismo. Está claro que grande parte dos problemas do pós-imperialismo ainda não foram solucionados.
Pergunta - Também é necessário dizer-se que este século conheceu uma maldade sem precedentes.
Hobsbawm - Para o senso comum do século 19, é inconcebível que um enorme progresso material coexista com um retrocesso moral. Mas a experiência demonstra que é possível. Também parece possível a combinação de ideologias anti-racionais com o controle de uma tecnologia baseada em fundamentos racionais. Parece-me uma das coisas mais preocupantes e perigosas de hoje. Em alguns países da Ásia, os movimentos fundamentalistas se apóiam em engenheiros e em especialistas em cálculos. Parece muito estranho que alguém que acredite no Alcorão possa ser, ao mesmo tempo, um engenheiro químico. É preciso ver como se resolve isto.
Pergunta - O senhor acredita que se, há cem anos, tivéssemos conversado nesta sala sobre o século que estava por começar, o olhar sobre o futuro teria sido distinto?
Hobsbawm - Sou bastante cético, creio que os problemas que tivemos nesse século na Europa e no Ocidente agora vão se deslocar para a Ásia. Não serão as mesmas guerras, talvez sejam outras. Por outro lado, alguns problemas, como o demográfico e os danos ao meio ambiente, não só não foram solucionados, como se agravaram. Não diria que é uma situação para sermos otimistas. Tampouco pessimistas. Ainda que, pessoalmente, eu sempre tenha sido de índole pessimista. Como dizia Gramsci, o pessimismo da inteligência, o otimismo da vontade. Em geral, neste século o pessimismo foi uma atitude bastante realista. Tomara que no terceiro milênio não o seja.
Pergunta - O senhor imagina um século longo para si?
Hobsbawm - A verdade é que não esperava chegar a esta idade. Minha mãe morreu aos 36 anos, meu pai aos 47. A tia que tomou conta de mim morreu aos 39 anos. De maneira que, dada a história familiar, não era muito provável que alcançasse esta idade. De acordo com as estatísticas, restam-me ainda uns seis ou sete anos de probabilidade de vida. Pessoalmente, prefiro continuar vivendo, mas todos sabemos que, cedo ou tarde, devemos morrer.
Pergunta - Esta é uma boa época para o senhor?
Hobsbawm - A velhice é menos agradável que a juventude. Mas alcancei um certo sucesso que antes, quando andava aí pelos 40 anos, não tinha. É muito agradável saber que meus livros foram traduzidos para vários idiomas e que em muitos países os que estudaram história leram meus livros. Essa é uma das vantagens de ter tantos anos. E espero continuar escrevendo.

Tradução de Ricardo de Azevedo.

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