São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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O triunfo do cristianismo tradicional

LEONARDO BOFF

A morte de frei Damião provocou manifestações de religiosidade que deixaram os analistas atônitos e mudas as principais lideranças religiosas. Emergiu visível o catolicismo tradicional que muitos julgavam perempto ou em vias de extinção. Esse catolicismo, entretanto, sobrevive na experiência religiosa do povo. E encontrou em frei Damião seu santo, seu profeta e seu avalista transcendente.
Que diz esse tipo de catolicismo? Ele fala do Deus justiceiro que criou os anjos e os demônios, o céu e o inferno e instaurou a igreja, fora da qual não há salvação. Ele apresenta uma moral de certezas que define claramente o limite do bem e do mal e quais são os pecados veniais, que levam ao purgatório, e mortais, ao inferno, e quais as obras meritórias para o céu.
Diz claramente, como faz frei Damião, que o uso da minissaia e da calça comprida e o beijo na boca fora do matrimônio levam ao inferno. Quem está amancebado ou quem deixou o casamento religioso para se casar com outro no civil, ambos estão no inferno de cabeça para baixo.
Essa apresentação do cristianismo está ligada a certa metafísica, quer dizer, a certa cosmovisão que racha o mundo em dois, entre sobrenatural e natural, entre corpo e alma, entre a perdição e a salvação.
Como representação da realidade (metafísica), ela é antiga, medieval e popular. Nela, entretanto, o cristianismo tradicional vazou seus conteúdos. Por meio dela a maioria do povo encontra sua identidade, já que a cosmovisão popular é religiosa. Essa maioria se sente ameaçada pelo processo de secularização e racionalização da sociedade moderna.
Acresce ainda que o cristianismo contemporâneo fez com o Concílio Vaticano 2º (1962-1965) um imenso "aggionarmento". Assumiu a cosmovisão contemporânea e, consequentemente, modulou de forma diferente os conteúdos da fé e da moral cristã.
Essa cosmovisão é holística, vê a unidade do processo divino-humano, figurado por Cristo, Deus-homem, e apresenta a graça divina qual arco-íris sobre todos os povos e pessoas.
Postula uma moral centrada na pessoa humana em sua concreção existencial e também em sua abertura infinita. Representa o céu e o inferno não como lugares de bem-aventurança ou danação, mas como condições humanas que se vão construindo já agora na história, ganhando sua última definição na eternidade.
Essa nova dicção do cristianismo se impôs, não sem certa coação, em toda a igreja. Mas faltou uma pedagogia que a levasse ao povo. Este continuou com sua tradição. Sentiu-se órfão, desprezado e até perseguido. Encontrou, no entanto, em frei Damião seu grande avalista.
O que os pais passaram aos filhos é o que frei Damião, em suas missões, sempre repetia. Ele representava a continuidade, o patrimônio cultural do povo. Seus milagres confirmavam a herança recebida. Ela continua válida, pensa o povo, até os dias de hoje. Não será a igreja progressista que invalidará o que os sinais do homem de Deus asseguram.
Eis a explicação mais imediata para o entusiasmo popular pela figura de frei Damião, apresentada como a de "um outro Cristo, o padre Cícero que voltou ao seio do seu povo". Numa palavra, frei Damião representa a resistência contra a invasão do novo cristianismo e da cultura moderna com a qual se articula. Nessa cultura e nesse tipo de cristianismo, o povo da tradição não tem vez, perde sua identidade, não encontra valores que lhe dêem centralidade.
O silêncio das lideranças religiosas e dos teólogos reside, no fundo, nisso: eles não se identificam mais com aquele tipo de cristianismo nem com seu portador, as camadas populares. Mudaram. Por isso todos se calaram.
Qual é, então, o problema? Deixar o povo onde está? Não. O povo tem direito a se apropriar, a partir de suas matrizes, dos benefícios de uma nova cosmovisão e da fé codificada a partir dela. Mantê-lo onde está é o propósito daqueles que o querem submisso e massa de manobra de suas políticas antipopulares. A presença de Collor no enterro suscitou esse fantasma.
Os cristãos progressistas e libertadores devem enfrentar o desafio do cristianismo do povo. O que fazer para que seja uma fonte de mobilização e de transformação, tirando o povo da situação de opressão e descaso? Como assegurar a densidade mística existente e junto com ela encontrar formas de expressão que a articulem com uma cultura da autonomia, da solidariedade, da democracia, cultura que inviabilize a manipulação política e religiosa?
As Comunidades Eclesiais de Base e as várias pastorais sociais fizeram já um belo ensaio e abriram um caminho promissor. Importa seguir e consolidar essa nova encarnação. Enquanto isso, frei Damião terá ingressado definitivamente no inconsciente coletivo do povo religioso, como um arquétipo do amor incondicional aos humildes e, para além de qualquer metafísica, como um símbolo vivo de santidade e da grande tradição.

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