São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 1997
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China transita entre nação emergente e potência global

GILSON SCHWARTZ
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A convivência de dois sistemas (comunismo e capitalismo) não é o único paradoxo da economia chinesa. As visões da China oscilam entre a categoria "grande mercado emergente" e a imagem de "grande potência do século 21".
É uma das mais importantes plataformas exportadoras da atualidade, mas não consegue entrar na Organização Mundial do Comércio e a cada ano vive tensões políticas ao negociar favores comerciais com os norte-americanos.
É candidata a abrigar o maior pólo financeiro asiático depois do Japão, a partir da incorporação de Hong Kong, mas enfrenta suspeitas generalizadas de maracutaias especulativas no jogo com as "red chips", ações de empresas estatais chinesas que progressivamente vão sendo privatizadas.
É uma economia que tem crescido a taxas espetaculares, mas a bolha especulativa desvia recursos que poderiam ser direcionados para investimentos produtivos.
Na economia política da China misturam-se a promessa e a ameaça.
No Fórum Econômico Mundial de Davos (encontro de líderes políticos, empresários e especialistas financeiros) deste ano circularam opiniões de empresários bastante céticos quanto à sustentação do "milagre chinês" no longo prazo.
Um deles disse explicitamente que apesar dos bilhões de dólares já colocados na China, é raro encontrar quem tenha de fato obtido um bom retorno. Os chineses estariam, na visão desse empresário, dispostos a oferecer muito em troca de tecnologia, mas apenas com o objetivo de assumirem eles mesmos a liderança e o controle.
Aos poucos, esse pragmático ceticismo revela uma lista de dificuldades tão extensa quanto a ladainha sobre a potência global emergente.
As agruras de investir na China vão desde a falsificação de assinaturas em contratos, depois que os chineses mudam algumas cláusulas, até as dificuldades de lidar com um sistema de crédito ainda instável, passando pela notória ausência de um sistema adequado de proteção à propriedade intelectual.
Mesmo assim, poucos estão dispostos a ignorar o potencial do grande mercado emergente ("big emerging market" ou BEM), conceito criado pelo governo norte-americano de Bill Clinton para identificar as melhores oportunidades de expansão de negócios para as empresas norte-americanas.
A rigor, trata-se menos da China e mais do que se conhece como Área Econômica Chinesa, o maior dos grandes mercados emergentes, que inclui a própria China, Hong Kong e Taiwan, um PIB de cerca de US$ 1 trilhão, o maior caixa de reservas do mundo e também o maior valor combinado de projetos anunciados de infra-estrutura do planeta, estimados em US$ 500 bilhões.
Não é por acaso que o presidente Clinton declarou-se, contra a tradição de governos anteriores ao seu, um "parceiro desavergonhado e ativo" dos empresários na missão de fechar contratos nesse mercado. Ao lado da China, Coréia do Sul, Asean (Associação de Países do Sudeste da Àsia composta por Brunei, Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura, Tailândia, Vietnã, Camboja, Laos, Myanma), Índia, África do Sul, Polônia, Turquia, Argentina, Brasil e México são vistos como os alvos da estratégia comercial dos EUA.
Entretanto, a imagem de potência e mesmo de "ameaça" global é igualmente forte. No mesmo encontro de Davos, uma professora da Universidade de Pequim assumiu abertamente a hostilidade do governo chinês às interferências norte-americanas na região a pretexto de preservar o equilíbrio de poder regional.
Os entreveros recentes entre chineses e alemães também mostraram que as autoridades chinesas muitas vezes são pouco sutis. Em geral, a queda de braço se dá em torno de encomendas bilionárias como por exemplo no setor de aviação e aeroespacial. A China, como outros casos asiáticos, optou também por desenvolver um sistema científico e tecnológico através de políticas de Estado.
Mas não é estritamente econômica a chave que talvez permita entender a oscilação entre promessa capitalista e ameaça comunista, que a rigor ainda está subjacente aos mais ardorosos crentes no "milagre chinês".
A política de abertura econômica chinesa, anunciada por Deng Xiaoping em 1978, não foi apenas uma superação da substituição de importações e da indústria pesada por setores exportadores, de produtos leves e intensivos em mão de obra barata, montados em zonas econômicas especiais e associadas à compra de tecnologia estrangeira.
Na origem do processo estava a necessidade de fazer frente à ameaça soviética. A aliança com os EUA e a política de abertura, iniciadas ambas ainda quando Mao Tse-tung vivia, foram prolongadas como instrumentos de disputa interna pelo poder no Partido Comunista Chinês e como alternativas no confronto com a União Soviética.
Embora a URSS não exista mais, o tabuleiro geopolítico global ainda não se estabilizou. No futuro da China, o contraponto entre a promessa de prosperidade e a ameaça à segurança regional continua sendo fundamental.
As relações entre Estados Unidos e China continuam decisivas, mas a China vem procurando uma aproximação com a Rússia. Outros BEMs, como Turquia, Asean, Brasil e Índia também insistem, volta e meia, na idéia de realizarem reformas liberalizantes à sua própria maneira e ritmo, quando não entram em atritos explícitos com interesses norte-americanos em foros globais.
Vistos desse ângulo menos econômico e mais estratégico e realista, os "grandes mercados emergentes" têm em comum não apenas o dinamismo de suas importações ou o tamanho de seus mercados consumidores, mas uma história comum de busca de modelos econômicos alternativos. Em cada um deles, a transição liberal vem assumindo tons que nem sempre combinam com o consenso liberal.
A aposta do presidente Clinton em "big emerging markets" é, portanto, ao mesmo tempo um investimento crucial para evitar a insegurança que resultaria de "grandes potências emergentes", com pretensões geopolíticas próprias e receitas econômicas heterodoxas no cenário da economia política global.

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