São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 1997
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Poder chinês na Ásia faz balançar o equilíbrio mundial

ROSS H. MUNRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O hasteamento da bandeira da República Popular da China em Hong Kong à 0h do dia 1º de julho, dentro de apenas seis dias, vai simbolizar mais um passo na rápida emergência da China enquanto grande potência mundial. Com Hong Kong, a China ganha a mais rica e economicamente mais dinâmica cidade chinesa.
Hong Kong também possui um dos melhores ancoradouros naturais e um dos maiores e mais bem operados portos em qualquer parte dos sete oceanos.
É amplamente aceito o fato de que Hong Kong faz parte da nação chinesa, embora também exista profunda preocupação mundial com relação a seu futuro, agora que os governantes da dinâmica cidade-Estado estarão em Pequim, não em Londres. Do mesmo modo, é amplamente aceito o fato de que a China tem total direito ao status de grande potência mundial, apesar da existência de substancial ansiedade, na Ásia e nos Estados Unidos, diante da possibilidade de que a China pretenda fazer uso de seu poderio rapidamente crescente para dominar a Ásia e modificar o equilíbrio de poder no mundo.
A aquisição de Hong Kong constitui apenas um ingrediente no misto dinâmico de fatores que está rapidamente impelindo a China ao primeiro escalão na comunidade das nações. O poderio chinês está crescendo basicamente porque a China vive o 18º ano da maior decolagem econômica na história mundial e, em parte, porque ela se encontra em meio ao que é hoje o maior e mais rápido processo de fortalecimento militar no mundo. Resumindo: os mais importantes ingredientes do poder internacional já foram assegurados.
Até pouco tempo atrás, o renascimento chinês estava longe de ser uma conquista garantida. A China havia suportado mais de 250 anos de atraso, fraqueza, divisão interna, invasões estrangeiras e, depois, uma brutal revolução comunista. Foi apenas após a morte, em 1976, do dedicado ideólogo e tirano comunista Mao Tsé-tung que a China se lançou na sua trajetória atual, que a está levando a ser um país rico, moderno e poderoso. Essa havia sido a meta de todos os grandes líderes chineses do século 20, mas foi apenas Deng Xiaoping, o grande político pragmático que consolidou seu poder nos anos seguintes à morte de Mao, quem encontrou a fórmula que vem funcionando até agora.
Um fato que muitas vezes passa despercebido é que Deng lançou a China no caminho do status de grande potência começando por transformar a zona rural chinesa. A revolução empreendida por Mao havia em grande medida destruído o feudalismo rural chinês. Mas Mao realizou essa proeza com grande brutalidade e depois substituiu o feudalismo por fazendas comunitárias das quais o mínimo que se pode dizer é que eram burocráticas e ineficientes.
Deng, porém, agiu com ousadia, transformando a China rural da noite para o dia, e depois deu partida na economia chinesa, devolvendo a propriedade efetiva da terra agrícola, em parcelas razoavelmente equitativas, às famílias individuais. A produtividade agrícola subiu vertiginosamente, virtualmente da noite para o dia, e durante vários anos continuou crescendo em cifras de dois algarismos.
Esse avanço foi acompanhado por um salto na produtividade das indústrias rurais, fato que passou em grande medida despercebido pelo resto do mundo, à medida que as oficinas comunitárias improdutivas eram transformadas em pequenas empresas movidas pelo lucro e que, hoje, muitas vezes estão integradas aos setores nacionais da economia chinesa e até mesmo ao setor de exportação. Assim, a base rural para a decolagem econômica já estava assentada no início da década de 80.
Na condição de pai da grande potência chinesa, Deng também aproveitou a oportunidade oferecida pela proximidade de dois centros capitalistas chineses situados na periferia da China -Hong Kong e Taiwan. Também nessa decisão a sorte mostrou estar do lado da China. Tanto Hong Kong quanto Taiwan ingressaram na década de 80 como vítimas de seu próprio sucesso. Elas haviam elevado seus preços a ponto de se excluírem da estratégia orientada à exportação e movida por mão-de-obra barata que havia enriquecido suas economias.
No momento de necessidade, a China acenou para elas, oferecendo aos empresários de Hong Kong e Taiwan mão-de-obra barata e terrenos baratos, já não disponíveis em seus próprios territórios. Os empresários transferiram sua produção para a China continental, levando consigo capital, tecnologia, habilidade de administração e acesso garantido aos mercados norte-americano e outros no exterior.
No decorrer dos anos, essas empresas "chinesas no exterior" conseguiram produzir, na China, entre 10 e 20 vezes mais roupas, calçados, brinquedos e artigos domésticos para exportação do que teriam podido produzir em seus próprios territórios. Mesmo hoje, apesar de muitos investimentos importantes por parte de empresas estrangeiras como Volkswagem, Motorola e Boeing, a maioria dos investimentos estrangeiros na China ainda vem de Hong Kong e Taiwan.
Sem a ajuda de seus "compatriotas" capitalistas no exterior, os chineses jamais teriam vivido a maior decolagem econômica do mundo, com índices de crescimento que vêm atingindo médias de 10% desde 1979.
Mesmo que esse ritmo diminua um pouco, por volta do ano 2010 a China terá a maior economia do mundo. Nessa data, deverá superar os EUA em termos de PNB bruto. Para alguns economistas, é possível que o PNB da China já tenha ultrapassado o do Japão.
Em sua busca do status de grande potência, a China está transformando sua força econômica em força política e militar. Quando os executivos-chefes das maiores empresas do mundo empreendem romarias até Pequim, numa tentativa compreensível e justificável de lucrar com o grande boom chinês, os líderes chineses deixam claro, sem muita sutileza, que o êxito das companhias ocidentais em investir e comerciar com a China vai depender, em medida significativa, de até que ponto a política externa de seus países é pró-chinesa. Assim, os líderes empresariais da Ásia, Europa e América do Norte, em especial, andam implorando aos líderes políticos que "tratem bem a China".
Parte da nova riqueza chinesa também está financiando um processo que já representa a maior e mais rápida estocagem de armamentos no mundo. Estranhamente, essa estocagem militar ganhou ímpeto no final da década de 80 e início dos anos 90, justamente quando a China se viu em situação militar mais segura do que estivera havia séculos.
Sua maior inimiga, a União Soviética, se fragmentara, pondo fim à ameaça de uma invasão vinda do norte, que comprometia grande porcentagem das unidades militares chinesas em condições de travar guerras.
O outro gigante asiático, a vizinha Índia, que já viveu conflitos militares, diplomáticos e ideológicos com a China, de repente se mostrou ansioso por aproximar-se da China, devido ao fim da superpotência que antes o protegia, a União Soviética.
E o Japão, única outra grande potência asiática teoricamente capaz de ameaçar ou contrabalançar a China, ainda estava quase inteiramente imerso no invólucro pacifista que o recobria desde a Segunda Guerra Mundial.
Assim, mesmo sem a estocagem armamentista, o poderio militar chinês relativo na Ásia já havia aumentado em função do colapso soviético. Mesmo assim, a China seguiu adiante com sua maciça estocagem militar. Parte da explicação é simples: pela primeira vez, ela tinha condições financeiras de modernizar suas Forças Armadas atrasadas. Mas a explicação chave é que os dirigentes chineses adotaram uma "grande estratégia" ambiciosa, cujo objetivo chave é dominar a Ásia inteira. E, para alcançar esse objetivo, a China requer poderio militar.
Os representantes chineses têm repetido com insistência: "Jamais buscaremos a hegemonia", ou seja, a China jamais vai procurar dominar outros países, muito menos a Ásia inteira.
Mas os dirigentes chineses já deixaram claro que têm três objetivos chaves no continente. O que eles não admitem publicamente é que, se alcançarem mesmo apenas dois desses objetivos, seu domínio da Ásia será completo.
Os três objetivos chaves chineses na Ásia são:
1. Conquista de Taiwan
Os dirigentes chineses ainda insistem publicamente que a República da China (Taiwan), que é efetivamente independente, não passa de uma província chinesa dirigida por um governo ilegal e renegado em Taipé.
Os líderes de Pequim afirmam que buscam a "reunificação da pátria", ou seja, assumir controle de Taiwan, por meios pacíficos ou militares. Insistem que a China tem o direito soberano de invadir Taiwan porque este é parte da China. Mas os líderes militares chineses mais jovens e os pensadores estratégicos estão mais interessados em Taiwan enquanto alvo estratégico porque, controlando Taiwan, o país poderia controlar o acesso ao Japão pelo sul, além do acesso oriental ao mar do sul da China. Desse modo, a própria aquisição de Taiwan já inclinaria a balança do poder na Ásia significativamente em favor da China.
Os esforços chineses para submeter Taiwan se dão em muitos níveis e são infindáveis. Diplomatas chineses em todo o mundo trabalham assiduamente no sentido de isolar Taiwan e limitar até mesmo seus contatos extra-oficiais com outros países.
Representantes da República Popular da China (RPC) pressionam empresários de Taiwan que investem na China continental para que assumam posições pró-RPC em Taiwan. E as Forças Armadas chinesas estão intensificando seus esforços para adquirir as armas, os navios e os aviões de que precisam para bloquear com eficácia ou mesmo, algum dia, invadir Taiwan.
Quanto ao mar do sul, a China reivindica soberania sobre quase todas as suas águas, ilhotas e recifes. Com isso, o território marítimo chinês faria fronteira com a Malásia, Cingapura, Indonésia e Filipinas, além do Vietnã, que faz fronteira terrestre com o país.
Isso também modificaria o equilíbrio de poder, pelo menos na região do sudeste asiático, em favor da China. Ademais, se a China conseguir transformar o mar do sul da China em uma lagoa chinesa, Pequim inevitavelmente procurará dar o passo seguinte: restringir ou regular a passagem de embarcações navais e mercantes no mar. Isso conferiria a ela o controle sobre a principal linha vital de comunicação do Japão. A maior parte do petróleo que supre o Japão, além de uma parte substancial de suas outras importações e exportações, passam por essas águas.
O mar do Sul da China também é vital para a Marinha norte-americana, tendo em vista que oferece as únicas rotas práticas que interligam o Pacífico ao oceano Índico e ao Golfo Pérsico.
2. Subserviência do Japão
A China não tem nenhuma intenção de invadir o Japão, nem mesmo no futuro distante, como pode vir a fazer com Taiwan. Mas seus dirigentes são implacáveis em reiterar que nunca mais se deve permitir que o Japão volte a ser uma "nação normal", responsável por sua própria defesa. Em suma, querem um Japão permanentemente fraco, em termos militares, e incapaz de desafiar a China, não importa o que esta venha a fazer com relação ao mar do sul da China, Taiwan, ou a Coréia, para citar apenas três exemplos óbvios.
Os líderes chineses justificam essa postura espantosa afirmando que o histórico japonês na Segunda Guerra Mundial é imperdoável e que, portanto, o Japão nunca mais deve possuir o poderio militar que seria de se esperar de um país com suas dimensões e sua riqueza.
Estrategistas chineses disseram que querem ver o Japão restrito, por tratados internacionais, a uma força de defesa ainda menor do que a que possui hoje e que foi prevista sob a "Constituição de paz" adotada pelo Japão após a Segunda Guerra, sob pressão norte-americana.
A postura da China equivale a uma propaganda estrategicamente astuta que visa solapar o único país asiático capaz, em um futuro previsível, de desempenhar um papel chave para impedir a China de dominar a Ásia.
Apesar da propaganda chinesa, não há nada que o Japão tenha feito na guerra, por terrível que seja, que outros países ditos "normais" não tenham feito no passado. E é especialmente hipócrita da parte da liderança chinesa, que se recusa até mesmo a comentar a questão das milhões de mortes pelas quais Mao foi responsável, transformar o Japão em pária especial.
3. Fim da presença militar dos EUA
É apenas de alguns poucos anos para cá que os dirigentes chineses vêm exigindo que os EUA fechem suas bases militares e retirem os aproximadamente 100 mil soldados que mantêm na Ásia. Mas estão expressando essas exigências de maneira cada vez mais pública e frequente. O interesse chinês na questão é evidente. Sem o compromisso militar norte-americano com seus amigos e aliados asiáticos, o equilíbrio de poder na Ásia cairia por terra, e a China rapidamente avançaria em direção ao domínio da região asiática inteira.
Embora preocupante, o grande objetivo estratégico chinês de dominar a Ásia não deve surpreender. De fato, ao adotar essa meta, os líderes chineses estão apenas tentando concretizar algo que tem sido normal para o país durante boa parte de sua história. Sempre que a China esteve forte e unida, ela dominou a Ásia oriental inteira. Os historiadores chegam a ter um nome para isso: o "sistema de Estados tributários".
Sob esse sistema, os líderes dos países vizinhos da China todos literalmente pagavam tributos anuais ao imperador da China, em reconhecimento ao domínio chinês sobre a região. Permitia-se aos vizinhos da China que seguissem seus caminhos próprios, desde que não lançassem ações importantes que a China visse como sendo contrárias a seus interesses. Quase instintivamente, agora que voltou a ter riqueza e poder militar, a China está tentando criar uma versão moderna do sistema de Estados tributários. Para a China, isso é normal. Assim, não chega a surpreender que alguns intelectuais chineses, fazendo uma brincadeira orgulhosa a respeito de seu país, gostem de dizer: "Nós apenas vivemos um par de séculos ruins".
Mas, agora que a China embarcou em seu esforço para dominar a Ásia, também embarcou numa rota de colisão com os Estados Unidos. Isso acontece porque a meta chinesa entra em conflito com aquilo que vem sendo a política americana fundamental em relação à Ásia por mais de um século. Para um país que é frequentemente acusado, muito justificadamente, de ser errático em sua política externa, os EUA têm sido notavelmente constantes quando se trata da Ásia: pelo menos desde a década de 1890, vêm se opondo ao domínio da Ásia por qualquer potência isolada.
Em última análise, a Segunda Guerra Mundial no Pacífico aconteceu por isso. Os EUA combateram na Coréia para impedir que aquilo que viam como uma aliança sino-soviética dominasse a Ásia. E lutaram no Vietnã em parte, e sem razão, para impedir o domínio chinês sobre a Ásia. Diferentemente daquela época, a China hoje tem potencial para dominar a região inteira, coisa que nenhum outro país possui.
O verdadeiro dilema dos EUA é que, embora possa ser a única superpotência remanescente no mundo, em última análise o país não vai dispor de recursos econômicos e militares suficientes para combater a ascensão do poderio chinês. Os EUA só poderão contrabalançar a ascensão chinesa se puderem se unir a outras potências asiáticas, em primeiro lugar o Japão. O equilíbrio de poder resultante poderia estabilizar a Ásia por décadas e beneficiar todos os países da região, até mesmo a China.
Mas a China vai invadir não apenas o palco asiático, mas também o palco mundial. Já está a caminho de tornar-se uma potência mundial com influência sobre todas as regiões -incluindo, com certeza, a América do Sul.

Na internet: http://www.munrolink.com

Tradução de Clara Allain.

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