São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 1997
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Devolução de Hong Kong à China dá início ao século da Ásia

CLÓVIS ROSSI
DO CONSELHO EDITORIAL

Para os amantes do simbolismo, a transferência de Hong Kong para a China, dia 1º, é um prato cheio.
É tentador tomá-la como uma evidência física da passagem do bastão do Ocidente para o Oriente, ao menos em termos de dinamismo econômico.
Afinal, Hong Kong foi um dos cinco portos que o Ocidente forçou a China a abrir ao comércio exterior, em meados do século passado, aproveitando a fraqueza da dinastia Qing.
Um século e meio depois, Hong Kong, a última jóia da coroa britânica, o poder imperial do século 19, volta a ser parte da China, o que pode ser usado como uma evidência de que o século 21 será o "século da Ásia", como acreditam inúmeros acadêmicos fascinados com o crescimento não só chinês mas de vários outros países da região Ásia/Pacífico.
Ou, alternativamente, como um momento chave no desafio, único na história moderna, de um país capaz não apenas de romper com a dominação colonial, mas de passar a desempenhar o papel de potência mundial.
Esta última perspectiva tem um aval de peso: Larry Summers, subsecretário norte-americano do Tesouro, dizia, em 1992: "Se continuar o atual diferencial no crescimento, a produção chinesa total superará a produção total norte-americana dentro de 11 anos".
Summers aludia ao fato de que a economia norte-americana, como a das demais potências ocidentais, vem tendo crescimento anêmico nas últimas duas décadas.
A China, bem ao contrário, cresceu ao alucinante ritmo de quase 10% ao ano, na média, no mesmo período.
"Os chineses queimaram um século em duas décadas", resume Vicente Verdú, em texto recente para a revista dominical do jornal espanhol "El País".
Quando 1% basta
O entusiasmo com os números chineses se explica, acima de tudo, pela suas dimensões, principalmente quando vistos com os olhos de comerciantes.
Um deles: se apenas 1% dos chineses comprasse um carro, as vendas representariam mais ou menos o total anual que as montadoras colocam anualmente no mercado brasileiro. São números ciclópicos, naturais para um país de 1,2 bilhão de habitantes. Nem seria necessário inflá-los ou usar argumentos falaciosos.
Mesmo que a previsão de Larry Summers estivesse correta, ou seja, mesmo que a produção chinesa superasse a norte-americana, ainda assim seria pouco, muito pouco. A população da China é quase seis vezes maior do que a norte-americana.
Logo, para abastecê-la, seria necessário que a produção da China fosse seis vezes superior à norte-americana.
Não está no horizonte esse momento, ainda mais agora que o Banco Mundial, em um novo estudo sobre a China, reduziu em 25% o tamanho de sua economia.
Em consequência, jogou para 31 anos (a contar do final de 1995) o tempo necessário para que a China se torne a maior economia do mundo.
O estudo ("Pobreza na China: O que dizem os números?") aumenta de forma exponencial o número de pobres nesse país, apesar de tão rápido crescimento.
O Banco Mundial usou um critério universal (é pobre quem vive com menos de US$ 1 por dia) e não o critério chinês (que põe acima da linha de pobreza quem ganha mais do que magros US$ 0,60 por dia).
Consequência, em números absolutos: os pobres na China são mais de 300 milhões, e não os 100 milhões antes tomados como referência oficial.
Sete conflitos
Para o capital internacional, pouco importa se são 300 milhões ou apenas 100 milhões os pobres.
Sobra, de todo modo, um ponderável número de consumidores, suficientes para que a rede de "fast food" McDonald's passasse de zero a 107 lojas no escasso período de dois anos (95, quando se abriu a primeira franquia, até agora).
Tudo na China é monumental, da pobreza ao potencial de consumo, das perspectivas de bons negócios ao potencial de conflito.
Afinal, trata-se de um país com 14 vizinhos. Com quatro deles mantém disputas fronteiriças.
Considerando-se também os países com os quais tem águas compartilhadas, são 24 os governos com os quais a China é obrigada a lidar. Com sete deles já teve conflitos bélicos no século, incluindo Estados Unidos e Rússia.
É também por esse potencial de conflito que a transferência de Hong Kong para a China tem toda uma carga simbólica.
Se tudo correr bem, o mundo respirará aliviado, na pressuposição de que a mesma suavidade marcará a volta de Macau, hoje domínio português, ao controle chinês, em 1999. E, muito mais importante, permitirá imaginar que a reincorporação de Taiwan poderá ser similar à de Hong Kong.
Turbulências mais fortes, no entanto, farão todos os olhos se voltarem para os 3 milhões de chineses que vestem o uniforme do Exército Popular de Libertação, que não é apenas um braço armado, mas também uma formidável máquina econômica, dona de 20 mil empresas.
Quem engole quem?
Difícil é dizer se se trata da absorção de Hong Kong pela China ou o contrário, se se tomar Hong Kong por sinônimo de capitalismom, e China, de comunismo.
Quinze anos atrás, no início, portanto, do "boom" econômico, 70% dos chineses diziam ao instituto Gallup que a prioridade era a realização do comunismo.
Em 1995, o Gallup repetiu a pergunta, e a prioridade enunciada por 1 milhão de chineses (cerca de 80%, portanto) passou a ser "ficar rico".
No intervalo, o regime chinês ganhou uma designação que é a perfeita contradição em termos: "economia socialista de mercado". Na prática, significa instituições políticas típicas do comunismo (como a ditadura de partido único) e regras crescentemente capitalistas na economia.
Diante desses números e evidências, parece mero formalismo o fato de a regra de transferência de Hong Kong para a China estabelecer que prevalecerá o chamado "um país, dois sistemas".

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