São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 1997
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Tio Dave, o homem que comeu demais

DAVID DREW ZINGG
EM ALBA, ITÁLIA

(Nota do editor: de vez em quando o velho gourmet Dave trata de algum assunto a sério. Esse assunto geralmente é algo que diz respeito a seu intestino delgado. É esse o caso, nessa semana. Nosso especialista viajante em comida e vinho está enfrentando os rigores enológicos e culinários da prodigiosa cultura italiana. Não sabemos se conseguirá sobreviver.)
Li um artigo de revista sobre a região italiana do Piemonte que dizia que muito poucos viajantes passam por lá.
Assim, quando Venancio Ferrari me convidou a viajar para o Piemonte com ele, respondi: "Claro, desde que a gente não precise comer demais. Você sabe, meu médico me mandou seguir uma dieta rígida".
Venancio, um homem conhecido em São Paulo por cumprir a palavra, movimentou sua cabeça para cima e para baixo, no conhecido gesto que significa "sim, si, yes, OK, ya e da".
Comer e beber
Só vários milhares de quilômetros adiante é que fui perceber que ele havia apenas feito o famoso movimento piemontês indicativo de comer e beber. Mas aí já era tarde, muito tarde demais.
Em pouco menos de uma única semana, o velho gourmet Dave comeu e bebeu comida e vinho em quantidade aproximadamente suficiente para suprir a população brasileira inteira, de hoje até o dia em que Fernando Henrique tomar posse no seu 17º mandato presidencial.
Estou escrevendo estas linhas em Alba, na parte noroeste da Itália.
Trata-se de um dos últimos grandes lugares no mundo onde a comida constitui o complemento histórico do vinho, e vice-versa.
Esse é um dos poucos lugares na Europa onde a comida e o vinho são cultivados pelas mesmas pessoas que a comem e o bebem.
A maioria dos piemonteses fala de uma em termos do outro. Essa região marcantemente bela da Itália pode não possuir toda a empáfia comercial de Bordeaux, a sofisticação da Toscana ou a elegância rural do vale do Napa, mas é única em termos do prazer que proporciona a quem a visita.
Existem poucos lugares no mundo, aos olhos deste viajante, onde se pode comer e beber tão bem quanto aqui, e com tanto deleite.
Essas são as colinas da fartura, e Venancio e eu temos nos fartado de comer e beber.
Barolo e Barbaresco
Essa coreografia de montanhas produz uma variedade infinita de vinhos.
Talvez os mais merecidamente célebres sejam o Barolo e o Barbaresco -ambos feitos a partir da uva "nebbiolo", que, por sua vez, deriva seu nome da "nebbia", ou névoa outonal que recobre essas montanhas como um cobertor.
Se você acha duro navegar por todas as complexidades dos grandes vinhos do distrito de Alba, Joãozinho, tenha piedade de tio Dave, com seu Q.I. de apenas uma uva.
Os bons vinhos Barolo e Barbaresco são resistentes e abertamente individualistas, quando novos.
A recompensa vem quando os bons amadurecem. Fiz um novo amigo por aqui, chamado Giancarlo Montaldo.
Ele é cavaleiro da Ordem dos Vinhos de Trufa e Alba.
Devemos, então, acreditar que ele sabe do que está falando, certo?
Giancarlo diz que quando os vinhos feitos com a uva "nebbiolo" amadurecem, dá para sentir o aroma do mundo em seu buquê.
Ele afirma que os traços dos perfumes de rosas, trufas, violetas, tabaco, alcatrão e especiarias diferenciam esse vinho de qualquer outro no mundo.
O sentido olfativo de tio Dave está sendo atualizado pelo fabricante, por isso ele foi obrigado a aceitar o parecer do Cavaleiro da Ordem da Trufa.
O Vinho de Bibi
O Dolcetto d'Alba é um vinho diferente, produzido pela vinícola do criativo viticultor pioneiro de Barolo, Renato Ratti, já morto.
Hoje é produzido por seu belo filho, Pietro, e por Massimo Martinelli.
Esse vinho notável, segundo consta, está repleto dos aromas de cassis e pimenta preta, e sua coloração é espantosamente escura.
Tio Dave está passando todas essas informações importantes a vocês porque conheceu Bibi Ratti, a viúva do viticultor.
Enquanto o vinho da família é repleto de sabor, Bibi é cheia de vida. Ela é uma dessas italianas surpreendentes que são verdadeiros paus para toda obra. Poderia facilmente dirigir qualquer empresa complicada e é suficientemente bela para agraciar a capa da revista "Vogue".
Quando eu a vi, uma noite da semana passada, Bibi estava preparando um jantar completo para seu filho Pietro, alguns primos e cinco convidados.
Sozinha na enorme cozinha de fazenda, ela ainda conseguiu participar integralmente de uma conversa complexa sobre a cidade de Nova York.
Bibi morou no Brasil por algum tempo.
Ela me convidou para um almoço piemontês típico que estava preparando para o dia seguinte. Uma tentação.
Nas profundezas da zona vinícola de Alba, Bibi estava preparando uma feijoada completa -com caipirinha de pinga e tudo.

Tradução de Clara Allain

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