São Paulo, sexta-feira, 27 de junho de 1997
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Hércules sai da lenda para entrar no mercado

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cada vez que chega aos cinemas uma nova produção Disney, a imprensa é soterrada por uma avalanche de números: milhões de dólares, dezenas de desenhistas, centenas de produtos licenciados.
O crítico se transforma numa espécie de contador, brandindo cifras, comparando com a performance do "produto" anterior, fazendo projeções etc.
Com "Hércules", o 35º desenho de longa-metragem do estúdio, a única diferença é que o próprio filme satiriza -com auto-ironia ou cinismo- essa mercantilização do imaginário.
Numa das suas melhores sequências, Hércules, tornado herói popular, vira marca de sandálias, refrigerantes e brinquedos.
Esse tipo de humor, que pisca um olho aos adultos, é responsável pelas melhores piadas de "Hércules", como a sequência em que o herói entra em Atenas, mostrada como uma versão grega da Nova York atual.
Banalização
Dito isso, vamos à crítica. Previsivelmente, a adaptação da história mitológica de Hércules tomou todas as liberdades possíveis. Até aí, tudo bem: sempre foi assim, de "A Espada Era a Lei" a "O Corcunda de Notre Dame".
Só que, no caso de "Hércules", as mudanças implicaram uma deformação total da história, com a consequente redução da riqueza dos caracteres gregos (deuses e heróis) a um maniqueísmo rasteiro.
Inevitável? Talvez não. Há ambiguidade em "O Rei Leão", há complexidade no "Corcunda".
Hércules, na mitologia grega, é filho de Zeus com a mortal Alcmena, mulher de Anfitrião.
É fruto, portanto, de um duplo adultério, e todos os seus infortúnios provêm da ira da enciumada Hera.
No desenho, Hércules é um deus, filho do harmônico casal Zeus e Hera, e só se torna mortal por pura malvadeza do invejoso Hades, deus dos infernos.
Com isso, a rica circunstância do herói se reduz a um confronto entre Zeus, o deus "do bem", e Hades, o "do mal".
Hércules tem de derrotar o segundo para servir ao primeiro e voltar ao Olimpo.
Sua tarefa é perturbada pelo aparecimento de uma mulher, Mégara, que, na melhor tradição das mulheres fatais dos filmes "noir", seduz o herói, a mando do vilão, mas acaba se apaixonando por ele.
Esse é mais um toque "adulto" num filme em que toda a ação principal -as façanhas de Hércules- sucumbe à estética dos monstros de desenhos japoneses de televisão.
Assim, quando os titãs, inimigos de Zeus, são libertados de sua prisão infernal por Hades, vemos surgir, num traço surpreendentemente tosco, criaturas grotescas que nada têm a ver com Prometeu, Cronos e todos aqueles seres fabulosos criados pelos gregos.
Comparada com as produções Disney anteriores, a estética de "Hércules" está mais próxima de "A Pequena Sereia" e "Aladdin", até porque os realizadores são praticamente os mesmos.
Temos, então, intercalados à ação, "clipes" românticos bregas que chegam ao clímax no horrendo final, na voz do ex-menudo Ricky Martin.
Se você quer que seu filho seja um ser pensante, e não um mero consumidor de bugigangas, apresente a ele "Os Doze Trabalhos de Hércules", de Monteiro Lobato.
Não ganhou nenhum Oscar, não rendeu milhões de dólares -mas é infinitamente melhor.

Filme: Hércules
Produção: EUA, 1997
Direção: John Musker, Ron Clements, Alice Dewey
Quando: a partir de hoje, nos cines Eldorado 1, Center Norte 1, Gazetinha e circuito, em versão dublada ou legendada

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