São Paulo, sábado, 28 de junho de 1997
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A escolha e o sonho

RUBENS RICUPERO

Mudança e escolha são inseparáveis como cara e coroa. As horas decisivas de ruptura e mudança na história são quase sempre acompanhadas por escolhas dilacerantes entre alternativas radicais e excludentes. Catolicismo ou protestantismo na reforma, monarquia ou república na Revolução Francesa, democracia ou totalitarismo nas revoluções comunistas ou fascistas.
É, ao contrário, durante os períodos de estabilização e continuidade que as opções praticamente desaparecem. Nos cinquenta anos da "belle époque", por exemplo, ninguém levava a sério outra organização social que não fosse a do liberalismo na política e na economia.
Hoje, nos defrontamos com uma situação "sui generis", talvez sem precedentes. Por um lado, nunca as mudanças foram tão drásticas e fulminantes. Por outro, há uma sensação de desamparo, de que não temos escolha. Gostemos ou não, quaisquer que sejam os nossos valores ou ideais, uma mudança particular, sempre a mesma para todos, parece impor-se de modo inexorável.
Não deixa de haver certa ironia que isso ocorra justamente quando o marxismo, aparentemente, entrou em recesso. Atualmente, muitos dos que ontem criticavam o mecanicismo da explicação marxista pregam a globalização como corolário inelutável das novas relações de produção revolucionadas pela tecnologia das telecomunicações, dos transportes e dos computadores.
Longe de se excluir, o marxismo-leninismo e seu antípoda, o neoliberalismo duro e puro, convergem, no fundo, em sua comum negação da possibilidade de que os homens possam ter uma verdadeira escolha.
Completamente diversa é a posição dos que não só admitem como desejam a possibilidade de opção, mas não conseguem discerni-la em meio à poeira levantada pelos escombros e desabamentos de um mundo em demolição.
Era isso, por exemplo, o que dizia Keynes a propósito do "laissez-faire", pai do neoliberalismo e avô da globalização: "Deve-se admitir que (os princípios do 'laissez-faire') foram consolidados nas mentes de pensadores sólidos e da opinião pública razoável pela pobreza das propostas alternativas -o protecionismo, de um lado, e o socialismo marxista, do outro".
Essas palavras foram escritas em 1926, quando a economia americana vivia euforia comparável à atual, com a Bolsa em expansão frenética, e os economistas prestigiosos da época anunciavam o fim das oscilações cíclicas e uma expansão sem recaídas. Três anos depois, em 1929, o colapso da Bolsa precipitaria os EUA e o mundo numa depressão da qual, em parte, só conseguiram sair graças à alternativa ao "laissez-faire" e ao marxismo proposta pelo próprio Keynes.
O recente encontro do G-8 em Denver constituiu o ponto alto do triunfalismo dos americanos, contagiados, como diria o presidente do Fed, pela "exuberância irracional" da Bolsa.
A autocomplacência com que os anfitriões esfregaram na cara de europeus e japoneses o êxito do seu processo de "destruição criativa" acabou por provocar efeito oposto ao desejado. Pondo de lado por um momento suas divisões, alemães, franceses e italianos se uniram na rejeição do modelo de individualismo, proteção social mínima e mercado de trabalho flexível.
Todos reconhecem, é claro, que a economia americana tem tido, nos últimos três a quatro anos, desempenho superior em termos de crescimento e geração de empregos. Mas não só a tendência é recente demais para permitir conclusões definitivas como existem, nesse quadro em "chiaroscuro", zonas de sombra que não devem ser ignoradas.
Dentre elas, destacam os críticos a queda em mais de 20%, nas últimas duas décadas, do salário real por hora dos trabalhadores jovens com 12 anos ou menos de escolaridade apenas (qualquer comparação com a situação educacional brasileira seria covardia), o aumento sensível da insegurança do emprego e da volatilidade em horas trabalhadas e pagamento recebido. A somatória desses fatos se reflete no comentário, um tanto exagerado, do ministro da Economia da França: "Como se pode ter um país no qual 2% da população adulta está na cadeia?".
Ou como comentou outro participante europeu: "Os americanos ficam o tempo todo insistindo para adotarmos o modelo deles. Logo depois, nos advertem de que não é prudente nos afastarmos do nosso hotel durante a noite..."
Um realismo sóbrio nos obriga a reconhecer que não temos uma solução satisfatória. Até hoje, nenhum sistema econômico foi capaz de garantir a todo ser humano desejoso de trabalhar um emprego produtivo e relativa igualdade de participação nos benefícios do sistema.
Será um sonho? Um mito criador? É possível. Mas, enquanto houver vida e esperança, ninguém impedirá as pessoas de sonhar com um modelo melhor e com a liberdade de escolhê-lo.

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