São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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Crítica da razão curta...

ROBERTO CAMPOS

Ao submeter ao Senado a ratificação do TNP (Tratado sobre a Não-Proliferação de Armas Nucleares), de 1968, ao qual o Brasil recusou adesão por três decênios, o presidente Fernando Henrique Cardoso põe termo a um fútil exercício de patriotada e paranóia. Estávamos até agora em crescente isolamento, pois somente Cuba, Israel, Índia e Paquistão permanecem fora desse acordo, que foi renovado em 1995, por prazo indeterminado.
Tornei-me um dissidente das doutrinas do Itamaraty quando, entre 1968 e 1970, em artigos e entrevistas, advoguei que o Brasil se engajasse na cruzada de não-proliferação nuclear e procurasse negociar sua adesão ao TNP em troca de vantagens especiais para um programa de desenvolvimento pacífico de energia nuclear.
Seria uma "grande barganha" àquela ocasião, pois a adesão do Brasil era considerada de valor estratégico decisivo para evitar uma corrida nuclear na América Latina.
Os argumentos de nossos diplomatas e militares contra o TNP, a meu ver, subestimavam gravemente:
1) Os custos econômicos da nuclearização;
2) Os custos ecológicos da poluição radioativa;
3) O custo político-estratégico de uma corrida nuclear na América Latina;
4) O custo político-econômico do isolamento do Brasil, pois a suspicácia internacional provocaria restrições em nosso acesso a tecnologias sensíveis.
A opinião pública foi, na ocasião, iludida com argumentos que se baseavam em falsas interpretações e "falsas analogias". A "falsa interpretação" era que a adesão ao TNP inibiria nossa liberdade na pesquisa nuclear pacífica. Ao contrário, o tratado preservava essa liberdade e prescrevia que os membros do clube nuclear oferecessem assistência técnica aos signatários. De resto, alguns países como Japão, Alemanha, Canadá e Itália se tornaram signatários do acordo e conseguiram desenvolver tecnologias de ponta.
O falso paralelismo é que o tratado só coibia a chamada "proliferação horizontal", sem exigir compromissos equivalentes de redução do arsenal das superpotências nucleares.
Ora, essa simetria refletia meramente as condições objetivas da "Real Politik", ou seja, a confrontação entre dois sistemas antagônicos: a democracia americana, compatível com o pluralismo político, e o totalitarismo soviético, baseado na ditadura do proletariado. Se os Estados Unidos não mantivessem superioridade nuclear, estariam em risco as duas opções básicas do nosso sistema: a democracia e a economia de mercado.
De outro lado, durante as negociações bilaterais das superpotências, seria perigoso deixar que se multiplicassem os países com acesso a gatilhos nucleares.
A "falsa analogia" consistia em comparar a negativa brasileira ao TNP com a de outros países não-signatários. Estes tinham inimigos claramente detectáveis. A China quis se nuclearizar por medo da União Soviética. A Índia, por medo da China. O Paquistão, por medo da Índia. Israel, por medo dos árabes. No Brasil, ao contrário, tínhamos uma inquietante escassez de inimigos credíveis e uma confortável "umbrella": a do Tratado Interamericano de Paz.
Também a Resolução 255 do Conselho de Segurança da ONU, de junho de 1968, previa garantia de assistência aos países não dotados de armas nucleares, vítimas de uma agressão nuclear. Por que então insistirmos no direito a fabricarmos uma "bombinha"? E por que a pertinácia da Marinha em seu "programa paralelo" do submarino nuclear?
Lembro-me de que, na réstia dos debates sobre o TNP, em 1968, no governo Costa e Silva, fui procurado no Rio pelo cientista americano Glen Seaborg, Prêmio Nobel de Física, então presidente da Comissão de Energia Atômica de Washington. Como simples ex-ministro do Planejamento, sem responsabilidades de governo, eu não era um interlocutor valioso. Convidei-o para um passeio de barco na Baía de Guanabara. O homem estava frustradíssimo pela incapacidade de persuadir seus interlocutores de Brasília da honestidade intelectual e validade econômica da proposta americana.
A adesão do Brasil ao TNP era de tal importância, para evitar desperdícios latino-americanos numa corrida nuclear, que Washington se disporia a oferecer-nos um generoso programa de desenvolvimento nuclear pacífico.
Isso incluiria o treinamento maciço de engenheiros em tecnologia nuclear, participação opcional no programa de "Átomos para a Paz" (que depois fracassou pela impossibilidade de eliminar efeitos radiativos nas explosões pacíficas) e financiamento concessional para termoelétricas nucleares.
O insucesso de diálogo com o Brasil, gerando muita suspicácia, foi agravado quando o presidente Carter, anos depois, suspendeu a garantia de fornecimento de urânio enriquecido para o reator de Angra 1, de fabricação norte-americana.
O presidente Geisel se pôs à busca de alternativas, daí resultando o acordo nuclear com a Alemanha, de 1975, bombasticamente chamado de "Acordo do Século". Paranoicamente, o acordo previa a construção de dez usinas nucleares até 1990. Anunciava-se que, a partir de então, o Brasil instalaria anualmente cinco usinas nucleares, com nacionalização quase completa dos componentes. Teríamos dominado o "ciclo de energia nuclear"!...
Faltavam naturalmente dois detalhes: o Brasil não tinha poupança interna par os gastos locais, e a Alemanha teria que usar uma tecnologia ainda experimental, a dos "jatos centrífugos". Por não termos assinado o TNP, a Holanda vetou nosso acesso à tecnologia mais antiga e bem testada das "ultra-centrífugas", para cuja redescoberta a Marinha brasileira já gastou rios de dinheiro em seu "programa paralelo"...
O ano de 1975 foi fatídico pela junção de dois eventos -o acordo nuclear com a Alemanha e a autorização dada ao Capre (antecessor da malfadada CEI) para controlar a importação e aprovar projetos de informática. Ambos são exemplos de monumental desperdício. Sempre tive dificuldades para entender como o presidente Geisel, intelectualmente honesto e setorialmente bem informado, tinha tanta capacidade de se enlear com patriotadas paranóicas. Era conhecida sua paixão pela Petrossauro (fábrica de déficits cambiais) e encantou-se com o nacionalismo informático e com o "Domínio Completo do Ciclo Nuclear".
Esses três temas devem aliás fazer parte de nosso "imbecil coletivo", pois mesmerizavam tanto políticos de esquerda quanto militares de direita. Um detalhe bizarro é que Juscelino Kubitschek, cassado pela Revolução, escreveu de próprio punho uma declaração em 8 de julho de 1975, na qual felicitava o presidente Geisel pelo acordo nuclear com a Alemanha, descrevendo-o como "o ato mais importante praticado pela Revolução nos últimos dez anos" (sic)!
A sensatez em matéria nuclear só começou a voltar à América Latina em 1980, quando o Brasil e a Argentina assinaram um acordo de cooperação nuclear, que culminaria em 1987 com visitas recíprocas dos presidentes Sarney e Alfonsín às instalações secretas dos dois países. Em 1981, assinar-se-ia um acordo quadripartite para aplicação de salvaguardas, envolvendo inspeção mútua dos dois países, com participação da Agência Internacional de Energia Atômica. Em 1994, o Brasil ratificaria o Tratado de Tlatelolco, que prescreve definitivamente o uso de armas nucleares na América Latina.
Vinte e dois anos se passaram desde o acordo com a Alemanha, e até hoje a Nuclebrás (hoje INB) só gerou cinco subsidiárias (filhotes de dinossauros) e nenhum só mísero kilowatt de energia! Espero que tenhamos aprendido a lição de que o ingresso no clube das armas nucleares não é passaporte para o desenvolvimento. Rússia e China há muito estão no clube e continuam subdesenvolvidos, enquanto que signatários do TNP, como a Alemanha, Japão, Itália e Canadá, são ricos em várias espécies de tecnologia, inclusive a nuclear.
Quando jovem filósofo, eu queimava pestanas lendo as obras clássicas de Kant -a "'Crítica da Razão Pura" e a "Crítica da Razão Prática". Para entender a paranóia brasileira em matéria nuclear, é preciso um livro que Kant não escreveu, e que eu não teria capacidade de escrever: "Crítica da Razão Curta".

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